Sonia Racy | O Estado de S. Paulo
O
período por que passa hoje o Brasil, com idas, vindas e incertezas
no trato da pandemia, pode ser entendido como uma espécie de “terceira guerra
mundial”, concorda o cientista político, consultor e advogado Murillo de Aragão,
da Arko Advice.
“O País nunca enfrentou um desafio dessa magnitude”, que “não afeta apenas a
saúde, mas também o comércio, o entretenimento, a educação, os hábitos da
sociedade”. Mas o pano de fundo, adverte, é “um mundo político que funciona no
modo crise”: só quando a coisa fica muito grave, é que se consegue um consenso
e uma saída.
Aragão segue de perto esse circo de acertos e conchavos há cerca de 30 anos, como consultor de bancos e empresas, em contato frequente com a área de investimentos, aqui e no exterior, além de atuar como palestrante. Sobre a vitória política do presidente Jair Bolsonaro, anteontem, com a eleição de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco como presidentes de Câmara e Senado, ele pondera, nesta entrevista para Cenários: “Não significa que a coordenação política esteja feita, ela está só começando. E vai ser afetada pela reforma ministerial que vem por aí.” A seguir, vão os principais trechos da conversa.
A
Câmara acaba de eleger, como presidente, Arthur Lira, preferido de Bolsonaro.
Como vê essa mudança?
O
Arthur Lira venceu pela força do governo e também pelo poder de articulação
dele, do Ricardo Barros e
do Ciro Nogueira dentro
do Congresso.
É um conforto para o governo, e também para as agendas da equipe econômica. Mas
isso não significa que a coordenação política do governo está feita. Ela está
apenas começando.
E
em que consiste essa nova coordenação? O que vai mudar?
É
uma nova etapa, onde a presença de um aliado dará ao presidente a tranquilidade
para enfrentar os ataques políticos que o governo vem sofrendo no caso da
pandemia. Mas essa tranquilidade terá de ser mantida e reforçada por uma
coordenação eficiente. E esta vai ser afetada pela reforma ministerial que deve
ocorrer em breve.
E
no médio e longo prazo? Como vê as eleições de 2022?
Considerando
a máquina pública e a popularidade do presidente, ele é um forte candidato a
estar no segundo turno. E até agora não temos uma candidatura forte no outro
campo. Aí, existem desafios, e o maior desafio de Bolsonaro é ele mesmo. Porque
existe uma narrativa antipolítica e, agora, ele se volta para o mundo político.
Mas há outros dois problemas intimamente ligados – a pandemia e a economia.
Como
vê a politização da pandemia, a briga entre governos e vacinas?
Olha, na área científica existe uma vaidade enorme... Eu tenho uma passagem pela academia, onde fiz meu doutorado, dou aula, e conheço o universo científico, onde há muita competição. E tem a questão geopolítica da vacina. Podemos fazer um paralelo com a guerra: quem tiver a vacina terá uma arma mais moderna...
Pode-se
encarar o atual desafio como uma espécie de terceira guerra mundial, contra um
inimigo invisível?
Sim,
é como eu vejo. Olha, um ano atrás postei na minha coluna na (revista) Veja um alerta sobre a
pandemia, e tudo o que eu mencionei lá atrás mais ou menos se realizou. O País
nunca enfrentou um problema dessa magnitude. Ela afeta a todos no Planeta,
igualmente. E mais: não afeta apenas a saúde. Afeta os hábitos da sociedade, o
comércio, o entretenimento. No livro Ano Zero,
que escrevi no ano passado, comparei alguns efeitos da guerra na sociedade. Por
exemplo, o número de abortos na Alemanha foi gigantesco, depois
da Grande Guerra. Nos Estados Unidos,
depois do crash de 1929, famílias foram destruídas, centenas de milhares de
pessoas vagavam pelo país como vagabundos... A pandemia pode ter esse mesmo
efeito.
Como
isso poderia ser resolvido?
O
Brasil é um País que funciona no modo crise. Quando a situação piora muito, aí
se chega a um consenso. A gente vai marchando entre conchavos e acertos, veja
aí a eleição de agora na Câmara e no Senado. Partidos têm um pé no governo e
outro fora do governo, a ambiguidade é parte do sistema. Só haveria união se a
situação piorasse muito.
O
ministro Paulo Guedes condicionou a volta do auxílio emergencial a um corte de
custos que depende do Congresso. Acha isso possível?
Essa
questão tem uma complexidade e uma simplicidade enorme. Vou falar da
simplicidade. O Estado aqui é mais forte que a sociedade e o aumento da despesa
acaba sendo financiado pelo aumento da arrecadação. Alguém dirá que o teto de
gastos cria limites. Mas se a pandemia se tornar mais dramática, ele será
flexibilizado, talvez por uma PEC, e acaba caindo na conta do cidadão. Num
imposto sobre transações digitais, uma CPMF, uma contribuição social sobre
lucro dos bancos, um Bolsa Família vindo de outras
fontes.
Acha
possível a união de forças políticas se a pandemia se agravar ainda mais?
Acredita num impeachment?
A
única razão que me pareceria capaz de unir as forças políticas seria para
derrubar o presidente. Mas não vejo nada disso acontecendo. Porque o
impeachment tem uma forma. Na Arko Advice a gente fez uma fórmula que foi
aplicada no caso Collor, lá de 1992. Você tem de
avaliar três fatores. O primeiro é o motivo, e esse é o que menos importa.
Segundo, e este importa bastante, é a popularidade. Presidente popular segura
um impeachment. Bolsonaro tem hoje popularidade (somando ótima, boa e regular)
acima dos 50% e militância muito aguerrida.
Ele
é um político que tem estratégia?
Eu
o vejo mais tático do que estratégico. Bolsonaro foi competente ao criar sua
candidatura, num momento de descrédito do centro político e da esquerda. Criou
uma estratégia para se eleger, mas no governo ele não tem estratégia. O governo
foi montado, desmontado, e aí chegou a pandemia. O hiperpresidencialismo deixou
de existir e Bolsonaro aprendeu isso na marra. Quando diz “eu não consigo fazer
nada, a Justiça não deixa fazer”, é verdade. E isso é o que protege a nossa
democracia – e talvez paralise alguns dos nossos avanços.
Muito
se fala num poder exacerbado do STF. Isso é bom para a democracia?
O Judiciário foi por muito tempo um
Poder opaco, quase chapa branca. De certo modo, continua sendo. Mas o que
tivemos desde o mensalão em 2005, com Joaquim Barbosa, foi um crescente
protagonismo do Judiciário. O STF virou
tribunal recursal da política, toda polêmica termina lá.
Fala-se
a toda hora em governo de esquerda, de direita. Diria que o atual governo é de
direita?
Às
vezes, o governo é politicamente de direita e economicamente de esquerda.. O
atual é politicamente de direita, sim, e economicamente liberal, mas não deixa
de ter traços do tenentismo, surgido nos anos 20, e que é intervencionista. Foi
o tenentismo que criou a Petrobrás, a Eletrobrás. Então, há traços de
direita, de esquerda... O Brasil é assim.
Tem
uma frase muito boa do Nizan Guanaes, publicitário, mas que só faz sentido em
inglês: não existem mais “left” ou “right”, existem “right” ou “wrong”, certo
ou errado...
É
uma realidade. O pragmatismo se impõe sobre os fatos e as crenças. Uma vez, meu
filho Tiago foi com um grupo à China e, numa palestra que
assistiram, na Juventude Comunista do PC Chinês, alguém disse: “Vocês sabem por
que a América do Sul não
dá certo? É porque vocês não respeitam o mercado!” Os mais esquerdistas, na
sala, ficaram horrorizados. O conferencista explicou: “Nós respeitamos o
mercado, produzimos o que ele quer”. Esse é o pragmatismo que nós deveríamos
ter.
O
Fernando Gabeira me disse anos atrás uma frase sobre capitalismo. “Não adianta
você mandar o capitalismo para o inferno, que ele há de fazer um bom negócio
por lá.” Mas, voltando ao tema, qual seria a reação se o Paulo Guedes pedisse o
chapéu?
Em
uma ou duas ocasiões, houve rumores de que ele iria embora. Acho que todo ministro
deveria ter, não digo uma carta de demissão na gaveta, mas estar preparado para
uma eventualidade. Foi mais ou menos o que aconteceu com o Wilson Ferreira,
na Eletrobrás, quando sentiu que não ia fazer diferença no processo. E ele fez
um belíssimo trabalho de reorganização na Eletrobrás.
Você
acredita num programa de privatização do atual governo?
Acredito
sim, principalmente naqueles itens já colocados nas PPIs, que são uma herança
do Uma Ponte para o Futuro,
projeto do Michel Temer,
que deu as bases do programa do ministro Tarcísio de Freitas,
na Infraestrutura.
Que
recado, enfim, você daria aqui sobre o futuro do País?
Estou
há 40 anos em Brasília e
diria que o País melhorou muito, sobretudo porque a sociedade se interessou
mais pela política. Há hoje uma presença maior das elites empresariais e
culturais debatendo o Estado e seu funcionamento. Outro avanço importante é a
redução do corporativismo. A reforma política vem sendo feito em fatias. E
temos US$ 350 bilhões em reservas, um sistema financeiro saudável e taxas de
juros mais realistas.
Pelo
que você diz, continuamos, então, a ser o País do futuro?
Estamos
construindo o futuro, ainda que a passo de tartaruga. E acho que vamos
continuar avançando. Os embates que tivemos nestes dois anos de governo
Bolsonaro revelam uma sociedade democrática e a existência de instituições
fortes. Isso é muito importante.
*CEO da Arko Advice, sócio fundador da advocacia Murillo de Aragão, professor adjunto da Columbia University (Nova York), autor de “Reforma política – o debate inadiável.”
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