O
governador assinara um ato suspendendo as atividades econômicas, impondo, com
ameaça de multa, o confinamento dos cidadãos por dez dias. Expunha-se a
outra face do drama da pandemia. No dia seguinte, diante a
repercussão negativa, o governador encenou sensibilidade, editando novos
decretos, agora, contraditoriamente, permitindo a reabertura das portas
das academias, dos bares e restaurantes.
Passado
um dia mais, viria um terceiro ato, suspendendo novas atividades produtivas.
Permitia, entretanto, reabrir coisas como bancas de
jornal. Os ginásios estavam fechados para o vôlei; mas os estádios abertos, com
ressalvas, para o futebol. Uma descoordenação total. Um
vai e vem de ordens, uma desordem. Os atos oficiais pareciam
surfar pelas madrugadas num copo de whisky.
Atemorizada
pelo aumento do número de mortos, a população assistia boquiaberta aquele
solitário jogo de damas do governador. Seria o lockdown uma
necessidade, de fato, diante das ameaças pandêmicas, ou uma mera expressão do
seu auto empoderamento? Uma brincadeira de mal gosto ou uma
corajosa tomada de decisão? Impressionava perceber como o governante
podia tudo – era o tal poder que emanava do povo - , estando bêbado
ou não.
O Presidente da República não fazia por menos: atropelava e desatropelava; agredia e contemporizava. Em um momento, anunciava a compra de uma vacina contra a pandemia, gerando esperanças; em seguida, o cancelamento. Já era outra a que interessava. Ministros e secretários de saúde se sucediam. Todos eram a favor do confinamento hoje. Mas, instantes depois, já se sentiam incomodados.
Enfim, a
incoerência tornava-se uma peça chave no xadrez que conduzia o poder de
vida ou de morte do governante sobre os cidadãos. Espalhava-se pelos governos e
governadores, alguns ameaçando ainda pular a cerca das próprias jurisdições
regionais, com acusações aos pares: uma guerra santa. O barbeiro estava lá
estirado sem saber como ia levar comida para casa no final do dia. O fiscal
desaparecera: safara-se da responsabilidade, dizendo que cumprira seu dever.
A partir
da instabilidade emocional dos governantes, a pandemia ganhava a volubilidade
das ruas. Os índices de mortalidade vulgarizavam-se, e começavam a configurar
uma anomia geral. Passou a servir de mote para exercícios nas artes, e até de
motivos de chistes nas ruas. Tinha gente vendendo atestado de óbito. Ninguém
parecia ter mais qualquer compromisso com a vida. Havia os que, mesmo
amedrontados, estavam perdendo o pudor diante da morte.
O
Presidente (e a família) iam-se tornando vagarosamente também incômodos. Ao
invés de acalmar a população, ele gerava sistematicamente insegurança. Mentia,
dizendo ou desdizendo. E não iria mudar. Ele era assim mesmo,
diferente de 220 milhões de brasileiros.
Os
governadores, quando cobrados pelos cidadãos, transferiam a irresponsabilidade
no combate à pandemia para a União, de quem esperavam sempre ajuda
financeira. “Se é para transformar o Brasil em uma Venezuela, eu saio”. Mas em
assuntos de governo, não se perde por esperar. Em meio a esse cipoal de medidas
e desmedidas, o próprio ministro da Fazenda anunciaria, logo depois, mais
R$ 44 bilhões para a saúde, para ser dividido, em convescote, com os
governadores; e uma retomada da ajuda emergencial, em dinheiro, para 40 milhões
de pessoas. Até tu, Guedes!
Sem
ninguém saber exatamente como gerir o coronavirus, a pandemia, como um
tsunami, atravessa o espaço da saúde e sacraliza, no campo, a
religiosidade da política. Os espertos a usam para passar “panos
quentes” nos mal feitos. Ela empodera as vaidades e ressuscita deuses
mortos, velhas práticas - jurídicas inclusive - e façanhas, criando
e recriando monstrinhos.
É
a herança dessa bela democracia, temperada com ficções ideológicas e
vulgaridades populistas. A pandemia estimula governantes a tornar a
verdade irrelevante.
*Aylê-Salassié F. Quintão, jornalista e professor
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