domingo, 28 de março de 2021

Bernardo Mello Franco - O Império contra-ataca

- O Globo

Em 2018, um incêndio destruiu coleções milenares e reduziu a cinzas o Museu Nacional. Agora o bolsonarismo quer concluir o serviço, despejando o acervo científico do palácio em reconstrução.

O governo planeja transformar o Paço de São Cristóvão num centro turístico dedicado à memória do Império. A articulação é liderada pelo ministro Ernesto Araújo, revelou a “Folha de S.Paulo”. O chanceler integra a ala mais reacionária do governo, ligada a grupos monarquistas.

O deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança, que quase foi vice de Bolsonaro, tem participado de reuniões sobre o tema. Ele descende da família imperial e costuma ser chamado de “príncipe”, embora o Brasil tenha proclamado a República em 1889.

A ideia de desalojar o Museu Nacional vinha sendo tramada em sigilo. O diretor da instituição, Alexander Kellner, e a reitora da UFRJ, Denise Carvalho, foram surpreendidos pela notícia. 

“O Museu Nacional é a instituição de pesquisa mais antiga do país. Despejá-lo seria um retrocesso inadmissível”, afirma a reitora. “Essa proposta é uma afronta à história e à sociedade. O Ministério das Relações Exteriores deveria estar preocupado com a compra de vacinas”, emenda o diretor.

Os dois lembram que o museu de história natural e antropologia ocupa o palácio há 129 anos. Turistas interessados na monarquia já podem visitar o Museu Imperial de Petrópolis, que guarda documentos, obras de arte e joias da Coroa.

O plano de despejar o Museu Nacional combina reacionarismo e ignorância histórica. Foi dom João VI quem fundou a instituição, em 1808, para “propagar os conhecimentos e estudos das ciências naturais no Reino do Brasil”. Dom Pedro I comprou a primeira coleção egípcia. Pedro II comandou o resgate do meteorito Bendegó. A peça foi trazida do sertão da Bahia e sobreviveu ao incêndio no palácio.

No museu de ideias caducas do bolsonarismo, o culto à ditadura militar convive com uma visão idealizada da monarquia. Esse revisionismo falsifica o passado e desconsidera o legado da escravidão. O chanceler Araújo já gravou vídeo ao lado de uma bandeira do Império. Em 2019, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, classificou a proclamação da República como “uma infâmia”.

O superintendente do Iphan no Rio, Olav Schrader, lamentou que a antiga residência de imperadores tenha passado a abrigar “esqueletos de dinossauros”. À coluna, ele disse que não comentaria o tema por considerá-lo “espuma sem materialidade”.

A ofensiva monarquista põe em risco o esforço para reerguer o museu bicentenário. O comitê que coordena as obras de reconstrução já captou R$ 244 milhões, e as embaixadas de Portugal, Áustria e Alemanha se comprometeram com doações. A meta é reinaugurar os jardins e a fachada do palácio em 2022. O acervo remanescente voltaria a ser exibido quatro anos depois.

Em nota, a UFRJ classificou a ideia de despejo como “grosseira”, “descabida”, “estapafúrdia” e “tirânica”. Os adjetivos parecem suaves para descrever a nova ameaça do governo à ciência e ao conhecimento.

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