Entramos
numa fase em que até as palavras começam a perder oxigênio. A indignação
nacional represada pela Covid-19 faz nascer uma sensação de atrofia verbal.
Chegamos ao estágio em que a voz de todo um Brasil condenado à própria
sorte/morte precisa de um empurrão para se manter vivo. Por enquanto, apenas a
curta associação de dois vocábulos — Bolsonaro + genocida —mantém intacto seu
poder de síntese para as gerações futuras.
Esta foi mais uma semana montanha-russa. As esperanças que dispararam com o anúncio de duas possíveis vacinas nacionais tiveram de conviver com dados abissais. Neste ano 1 de pandemia, a terra brasileira se viu escavada para abrigar seus primeiros 305 mil mortos de Covid-19. Haverá muitos mais. Os que até agora escaparam convivem com o peito sobressaltado pela necessidade de se atualizar com alarmes novos. Nos primórdios da pandemia, havia a falta de máscaras para a população e da proteção inadequada para os agentes de saúde. Houve escassez de leitos hospitalares, de respiradores, houve a multiplicação de covas-relâmpago. Depois veio a constatação da vacinação tardia, a conta-gotas, de leitos transbordantes também em enfermarias, do criminoso esgotamento do oxigênio hospitalar em Manaus, da iminente falta de kits de entubação em todo o território nacional. Por fim, chegamos à real ameaça de colapso dos próprios profissionais de saúde — sem que nenhuma das carências anteriores esteja dominada.
Tome-se
o caso da Santa Casa de Misericórdia de São Carlos, cidade de 250 mil
habitantes do interior de São Paulo. Na quinta feira, reportou Ana Letícia Leão
no GLOBO, à instituição só restavam kits de entubação para as 48 horas
seguintes. O atendimento na UTI teve de ser suspenso, um apelo de transferência
de 60 pacientes foi encaminhado à central estadual, e 27 técnicos de enfermagem
e enfermeiros pediam demissão. O caso leva a pensar em condenados à morte na
acepção convencional do termo.
Nos
Estados Unidos, a pena de morte foi restabelecida em 1976 após um hiato de
quatro anos, à condição de que fosse executada de forma menos bárbara do que a
forca ou a cadeira elétrica. O Estado do Texas, eterno campeão na modalidade,
introduziu então um método de mascarar a violência da execução, tornando-a mais
“higiênica”: a injeção sequencial de três drogas que levam a óbito. Em
princípio, seria indolor. Afivelado numa maca em recinto de aspecto hospitalar,
o condenado recebe duas sondas em cada braço. A outra extremidade dos fios
dessas sondas fica numa saleta contígua, longe da vista das testemunhas
obrigatórias por lei. Ali, dois enfermeiros voluntários acionam as seringas na
sequência indicada (o Conselho Americano de Anestesiologia proíbe a
participação de seus filiados): primeiro um sedativo, depois um bloqueador
neuromuscular, por fim a dose de cloreto de potássio para cessar o
funcionamento cardíaco do “paciente”.
Em
tese, o procedimento não é “nem cruel nem incomum”, como manda a Oitava Emenda
da Constituição americana. Só que nem sempre tem sido assim. À medida que a
pena capital foi sendo varrida das nações civilizadas, que passaram da abolição
à condenação da prática, a União Europeia passou a proibir os laboratórios dos
países-membros de vender esses insumos à Justiça criminal americana. Resultado:
o coquetel letal original teve de ser substituído por alternativas locais e
mambembes, resultando em procedimentos muitas vezes sombrios. O pior deles
ocorreu em 2014, quando o condenado Joseph Wood teve de receber 15 injeções,
sofreu 640 microconvulsões e viveu duas horas de suplício antes de poder
morrer.
Em
comum entre a aplicação do coquetel da morte nos EUA e o recurso para salvar
vidas de brasileiros necessitados de entubação, apenas os dois ingredientes
cruciais que aliviam a agonia: sedativos e o bloqueador neuromuscular. Na
ausência de uns ou outro, o suplício físico de quem vai morrer ou de quem
espera viver é semelhante. A diferença maior está no estender dos braços para a
injeção. A maioria dos condenados à morte teve tempo para amadurecer seu medo,
pois passou em média mais de 10 anos em cela solitária. O infectado em estado
grave pela Covid-19 não teve nenhum preparo para se conciliar com o medo de não
mais acordar.
Algumas
notícias animadoras vez por outra amenizam a montanha-russa diária do
brasileiro. Na sexta-feira, a cidade paulista de Araraquara pôde anunciar zero
morte de Covid-19 nas 24 horas anteriores, graças ao radical lockdown de 20
dias decretado pelo prefeito petista Edinho Silva. Também foi merecedor de
alívio o comunicado da criação de uma nova vacina contra a Covid, a Butanvac,
com grife do Instituto Butantan e promessas de entrega ainda para este ano.
Algumas horas mais tarde, o anúncio da estreia de uma segunda vacina iminente,
a Versalume, impulsionada pelo governo federal, ajudou a temperar a escalada de
3.650 mortos nas 24 horas anteriores. Os testes clínicos em humanos de ambas
ainda não foram iniciados, e nesta corrida prevalece a disputa política entre
Brasília e a São Paulo de João Doria. Não importa. É uma arrancada.
A única constante a temer é a mente de Jair Bolsonaro, que continua congelada criogenicamente.
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