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Folha de S. Paulo
Antiga polarização PT-PSDB precisa ser superada para construir uma frente com olho no futuro
Autores
sustentam que, com o extremismo
antidemocrático de Jair Bolsonaro, nenhuma força política está à direita do
governo. No novo tabuleiro político, PT e PSDB têm hoje mais identidades que
arestas entre si.
Desde
o final da ditadura militar, nós nos acostumamos a pensar
a política no Brasil como um pêndulo entre polos acomodados no PT e no PSDB.
O
primeiro nasceu da confluência entre o movimento sindical dos anos 1970, a base
radicalizada da Igreja Católica e as organizações clandestinas que se opunham
aos militares. Convencionou-se chamá-lo de esquerda.
O
segundo surgiu de um racha do velho MDB, autodeclarando-se social-democrata.
Com o tempo, aliou-se a próceres civis do regime autoritário, e, sobretudo após
o ocaso do malufismo, no início dos anos 2.000, assumiu o posto da
centro-direita.
Nessa
gangorra desengonçada se escondia um indefinível ponto de equilíbrio. O
eleitorado tendia ora para um lado, ora para outro, em oscilações que davam a
impressão de que o dilema do poder no Brasil se resumia a escolher entre esses
polos.
Sendo
ambos gerados no campo da democracia, a polarização se dava em torno de
divergências naturais em relação à política econômica ou à abrangência de
políticas públicas. Acreditávamos que a alternância entre os dois fortaleceria
os acertos e corrigiria os erros de cada um.
Em
2013, isso começou a mudar: havia nas ruas algo descolado da velha
dicotomia PT-PSDB e seus satélites costumeiros. Do asfalto tomado pelas
multidões, aflorou uma crítica feroz ao Estado —de resto, ineficiente.
Logo
percebemos que o atraso, a treva e a selva desfilavam nas passeatas, ao lado de
milhões de pessoas de boa fé. Em algumas das vertentes projetadas por 2013, o
propósito parecia pender para a eliminação do Estado, ao invés de apostar em
aperfeiçoamentos institucionais. Exumadas das profundezas da história
patriarcal e escravagista, vozes cavernosas passaram a clamar por tirania e
intervenção militar.
À
primeira vista, o brado reacionário parecia folclórico, algo caricato, mas logo
se viu que o pesadelo tinha vindo para ficar e falava sério. Em 2016, no impeachment
casuístico de Dilma Rousseff, a extrema direita mais furibunda mostrou a
cara por inteiro. O moralismo de fundo religioso, a violência policial, as
milícias semiclandestinas e os piores ícones do regime militar deram então de
assombrar a opinião pública e o Congresso Nacional.
O vazio de liderança política e a dissonância social pariram Jair Bolsonaro. A eleição de 2018 destampou o esgoto. O autoritarismo atroz, primário e regressivo saiu dos porões pretéritos para se instalar no Palácio do Planalto atual. A trágica reviravolta se consumou: PT e PSDB foram empurrados para o canto da sala e, desde então, não mais polarizam as corridas eleitorais.
Em
solavancos, o ecossistema político se expandiu para a extrema direita, turvando
e mesmo violando as fronteiras do campo democrático. O resultado disso é que
petistas e tucanos autênticos, antes apartados, passaram a figurar mais ou
menos juntos, em um ponto largo que se estende da centro-direita à esquerda
tradicional.
Tenhamos
isso bem claro: com o surgimento do extremismo antidemocrático, nada está à
direita do governo e o que era centro foi violentamente empurrado para a sua
esquerda, de tal modo que PSDB e PT, hoje, habitam o mesmo flanco, são
vizinhos. Em outras palavras, o centro se deslocou para a esquerda e a esquerda
fez uma inflexão ao centro.
O
novo tabuleiro da política não deixa dúvidas. A distância entre PT e PSDB
parece ínfima quando comparada ao abismo que os separa da selvageria armada
pelo governo federal. Há mais identidades do que arestas entre ambos, o que
explica as aproximações noticiadas pela imprensa. Simbólica é a recente
declaração de Fernando Henrique Cardoso de que entre Lula e Bolsonaro,
em 2022, não hesitaria em sufragar o primeiro, “o menos pior”.
Com
efeito, o nome de Lula ganha um toque crucial na conjuntura. Liberado
das condenações que o arrancaram da vida pública, ele retorna como
alternativa para 2022. Depois do antilulismo, encarnado por Bolsonaro, abre-se
a temporada do antibolsonarismo, ou do anti-antilulismo, a ser encarnado por
Lula. Esse fato novo gera três consequências.
A
primeira é que, em questão de poucos dias, a candidatura de Lula —não expressa,
mas claramente colocada— ocupou o espaço vazio que estava à espera de uma
figura “inovadora”, “nem de esquerda, nem de direita”. Ficou patente que, se
demonstrar habilidade na costura de alianças, Lula, líder de esquerda, poderá
se fortalecer como o maior expoente do centro alargado. Se isso se confirmar,
não haverá um terceiro nome viável para 2022.
A
segunda consequência, decorrente da primeira, é que, para vencer as
resistências à sua candidatura —demonstradas recentemente por pesquisa
do Datafolha, dando conta de que 57% dos brasileiros acham que Lula é culpado
de corrupção—, Lula terá de enunciar uma mensagem clara contra os graves
desvios éticos registrados em seus governos.
Só
assim poderá representar forças democráticas sem filiações de esquerda. Terá de
assumir compromisso de que determinados erros —e crimes— não serão repetidos em
um eventual futuro governo.
A
terceira consequência carrega uma dose de ironia: se vier, de fato, a se firmar
como aglutinador dos que querem varrer o bolsonarismo do poder, Lula passará a
depender de uma estratégia que precisa postergar o enfrentamento contra
Bolsonaro para 2022. Isso significa que o impeachment deixará de fazer parte da
pauta preferencial do lulismo.
O
paradoxo é cruel: para vencer Bolsonaro, a articulação pró-Lula verá benefícios
táticos em manter o presidente no cargo, tentando fazê-lo sangrar até o ano que
vem. O paradoxo cobrará seu preço em mais sofrimento, mas poderá abrir caminho
para uma vitória mais sólida e mais duradoura no futuro. Vai ser penoso.
De
todo modo, é mais ou menos isso o que vai se desenhando no horizonte próximo.
Enquanto dura o suspense, aguardemos que os atores políticos e líderes
empresariais que deram sustentação até hoje ao presidente da República
amadureçam e reconheçam que a experiência bolsonarista só nos rendeu
degeneração institucional, desmatamento, desemprego generalizado e elevação do
número de mortes, sem falar no isolamento internacional.
Já
é tempo de jogar por terra o equívoco dos que insistem na tese de que Lula e
Bolsonaro são males simétricos, ainda que com o sinal invertido. Essa ilusão de
ótica, cujos efeitos foram e são nefastos, precisa ser abandonada o quanto
antes, até para que se qualifique a crítica a Lula e ao PT e se desenvolvam
novos termos de entendimento.
A catástrofe
gerada pela pandemia no Brasil prova que o desgoverno atual dizima vidas
e esperanças, em todas as frentes. As insistentes tentativas empreendidas pelo
chefe de Estado em promover a ruptura institucional, com ataques em série
contra a democracia, só fazem agravar os danos à economia. Isso tudo consuma o
caráter sem caráter do pacto autoritário que aí está. É necessário virar o
jogo.
Para
tanto, a polaridade de antes deve ser superada. Sem esquecer os erros do
passado, tanto do PT quanto do PSDB, é preciso construir uma frente com olhos
no futuro. Precisamos selar acordos acima de interesses pessoais de quem quer
que seja.
A
história não anda para trás, mas um país desgovernado pode, sim, retroceder. A
gravidade da hora nos diz que a polarização que conta para o Brasil se define
pelo dilema existencial entre civilização (democracia) e barbárie
(bolsonarismo).
Cientista
político e professor do Insper
**Eugênio
Bucci
Jornalista e professor da ECA-USP
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