Após
idas e vindas, o presidente Jair Bolsonaro enfim decidiu-se
a falar ao país, em cadeia de rádio e TV, sobre a fase dizimadora da
pandemia de Covid-19 que enluta os brasileiros. Adotou tom comedido, expressou
compaixão com as vítimas e prometeu prioridade ao avanço da vacinação.
Pareceria
um discurso digno de um chefe de Estado, não fossem as lorotas sobre os feitos
de sua administração na crise e, principalmente, a enorme discrepância entre o
desvelo retórico dedicado à tragédia e a prática negacionista, negligente e
sabotadora que exibe diariamente desde o ano passado.
Não foi a primeira vez, recorde-se, que Bolsonaro buscou a sensatez em um pronunciamento à nação. Em 31 de março de 2020, anunciou que o enfrentamento da epidemia representava “o maior desafio de nossa geração” —apenas para, em questão de horas, voltar a pregar contra o distanciamento social e a espalhar notícias falsas.
Agora,
teve evidente preocupação em prestar contas das ações do governo, ainda que
torcendo os fatos. Alardeou que o Brasil é o quinto país que mais vacina no
mundo, quando ocupamos a 73ª colocação no ranking que, corretamente, considera
o percentual da população; falou da Coronavac como se nunca tivesse feito
campanha pública contra o imunizante.
Se
sobram motivos para descrer de alguma conversão sincera do mandatário à razão e
à solidariedade, há a observar os efeitos de uma nova conjuntura política sobre
sua conduta vindoura.
Bolsonaro
está sob pressão como nunca antes em seu desastrado governo. Os recordes
diários de mortes e a paralisia econômica minam sua popularidade, como atestam
as pesquisas; os aliados do centrão, profissionais do poder, cobram
do Planalto um mínimo de racionalidade capaz de evitar um malogro
conjunto.
A
anulação das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT),
ademais, cria cenários ainda mais imponderáveis para as eleições gerais de
2022.
Ao
movimento tardio do mundo político se
somou o do empresariado, que passou a dar mostras agora inequívocas de
insatisfação com a Presidência. Economistas, banqueiros, ex-ministros,
industriais e ex-presidentes do Banco Central assinaram manifesto que reacende
o vigor da sociedade civil, até então abafado no recolhimento imposto pela
pandemia.
Tais fatores ajudam a explicar, sem dúvida, a mudança de tom no discurso do presidente, bem como a criação, nesta quarta-feira (24), de um duvidoso comitê para coordenar as ações contra a Covid-19. Resta saber se esse ensaio de pragmatismo tem alguma chance de sobreviver à natureza bolsonarista.
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