Precisaremos
de mais 300 mil defuntos para que diga o que precisa ser dito, fora Bolsonaro?
À parte a declaração da parcialidade do juiz Sergio Moro no caso de Lula, o que se deu em turbinadíssima sessão da Segunda Turma do Supremo, anteontem, em clima de final de BBB (as transmissões da TV Justiça têm o andamento de um reality show de mau gosto, uma espécie de circo de gladiadores em que os esquartejamentos são verbais e os leões esfaimados vestem toga); à parte o discurso do mitômano, também anteontem, tentando reescrever a história da pandemia no Brasil à moda do Big Brother de George Orwell; à parte termos ultrapassado o marco dos 3 mil cadáveres por dia, em curva vertical, a semana transcorreria monótona. Acontece que, além disso, daquilo e daquilo outro, tivemos a momentosa carta aberta de banqueiros, economistas e empresários que, sem citar o nome do mitômano, cobra dele uma conduta menos psicopática (sem usar esse termo também) no enfrentamento da pandemia.
Não
se descarte a hipótese de que a fala presidencial na terça à noite, acompanhada
de panelaços e buzinaços, tenha sido uma resposta à famigerada carta, cuja
repercussão jornalística foi, para sermos conservadores, colossal. Editoriais e
longas reportagens se dedicaram a esmiuçar trechos do tão propalado documento.
Nas entrelinhas da vasta cobertura, havia um quê de “agora sim”: agora que “o
mercado” finalmente protestou, o presidente da República vai ser enquadrado e
vai se emendar. Ou: agora que “o mercado” ralhou, o apoio da Avenida Faria Lima
ao mandatário que nos desgoverna vai minguar.
Tomara
que assim seja, mas será que assim será? O tipo se emenda? Será. Haverá nesse
necrodoido, nesse Nero de Twitter, um coté de Mahatma Gandhi? Francamente, nem
“o mercado”, agraciado por tantas bondades e promessas, acredita nisso. De
outra parte, será que “o mercado” despachará a ordem para que se destitua o
governante de uma vez por todas? A ver – para não crer.
O
fato é que “o mercado”, se tem mesmo disposição para agir, demorou demais para
dar sinais de vida cívica. Agora é tarde, senhoras e senhores. Tarde demais. No
copioso abaixo-assinado dos financistas – viramos, em definitivo, uma terra das
extravagâncias discursivas, em que até a especulação de capitais deu de fazer
abaixo-assinado –, duas frases chamam especialmente a atenção. A primeira
delas: “Não há mais tempo a perder em
debates estéreis e notícias falsas”. A segunda: “O país tem pressa”.
Ocupemo-nos
desse interessante senso de urgência. Se levarmos em conta que a carta aberta
começou a circular no domingo à noite, devemos subentender que até domingo, aí,
sim, ainda havia alguma gordura de tempo a perder e, até então, o País não
tinha tanta pressa assim, só tinha um pouquinho de pressa. Ou devemos
subentender outra coisa?
Pensemos
um pouco a respeito. Os profissionais que ganham a vida lidando com dinheiros,
mandando cifrões para lá e para cá, são remunerados por sua capacidade de se
antecipar. O bom operador é o que identifica uma tendência antes dos outros, de
tal sorte que o concorrente é apanhado de calças curtas. Os geninhos do
“mercado” se distinguem por saber primeiro, por antever.
Mas
quando o assunto é a catástrofe humanitária em que soçobramos – por obra
autoral do mitômano que “o mercado” apoiou com seu silêncio até domingo passado
–, parece que as virtudes tão valorizadas nesse segmento trilionário da
humanidade se invertem. Agora a rapidez dá lugar à lentidão. As assinaturas que
no dia a dia profissional se gabam de ver as coisas que vão acontecer antes que
aconteçam de verdade se enfileiram para contar ao País o que o País inteiro já
sabe de trás para diante. Falam em máscaras, falam em ouvir a ciência e chegam
a demonstrar, numa espécie de business
plan da imunização em massa, que o ROI das vacinas é altamente
compensador. Nada a opor quanto a isso, mas... isso é tudo?
É
claro que os brasileiros devem comemorar que, antes tarde demais do que nunca
mais, juristas, ex-presidentes do Banco Central, acadêmicos e todos os tantos
quantos do “mercado” venham dizer em público que a barbárie precisa ser
contida. É claro que o gesto merece aplausos. Tudo certo até aí. Mas precisava
ser assim, em palavras tão contidas, tão moderadas, que nem mesmo apontam a
responsabilidade direta do mitômano pelo morticínio? E precisava demorar tanto?
O
que é que o País faz com isso agora? Para onde poderá seguir? Qual o próximo
passo? A sustentação do “mercado” a esse governo vai prosseguir intrépida e
incólume, confiante na parolagem de Chicago envelhecida por 40 anos em tonéis
de cloroquina? Sim, sim, “o mercado” moveu a sobrancelha, palmas para ele. Mas
vai romper? Ou meia calabresa, meia muçarela?
Será que precisaremos de mais 300 mil defuntos em contêineres, em corredores de hospitais, em caminhões fazendo filas noturnas em cemitérios de valas abertas por retroescavadeiras para que “o mercado” diga o que de fato precisa ser dito, fora Bolsonaro? É cruel perguntar assim, dói na carne viva, dói na natureza morta em que nos convertemos, mas é preciso. Qual será o preço em vidas humanas?
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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