Trezentos
mil mortos são uma derrota coletiva tão avassaladora que o país não sabe mais
medir, não tem palavras para qualificar. Existe apenas esse luto sobre nós, dia
após dia. O que o presidente Bolsonaro fez ontem foi pouco, tarde e enganoso.
Ele busca um álibi. Tenta montar uma rota de fuga e chamou quem pode lhe dar
cobertura. Convidou apenas os governadores que lhe são próximos. Não convidou o
Butantan e a Fiocruz. Os presidentes da Câmara e do Senado podem estar
sinceramente envolvidos na missão, o novo ministro pode melhorar o clima no
governo, mas a verdade é que o presidente jamais vai liderar um bom plano de
coordenação da crise. Porque ele não quer e não sabe.
A reunião de ontem no Planalto foi excludente. Bolsonaro escolheu a dedo os coadjuvantes do seu teatro. Não estava sendo sincero quando disse: “a vida em primeiro lugar”. E isso é possível garantir com base em todas declarações feitas durante um ano inteiro.
A
ideia de união contra a crise não tem coerência mínima com o que o presidente
fala e faz. Para citar apenas três atos dos últimos dias. Ele encontrou com um
grupo de pessoas aglomeradas em frente ao Alvorada, para festejar seu
aniversário. Distribuiu fatias de bolo e ameaças de golpe. Um dia depois,
declarou que ninguém o havia convencido de que estava errado. Dias antes, havia
entrado no Supremo com uma ação contra três governadores, propósito no qual
fracassou.
A
mudança do presidente é uma encenação. O novo chefe da Secom, o almirante
Flávio Rocha, deu outra orientação para a desastrosa comunicação do presidente.
Ter um militar, e da ativa, nesse posto é sinal de que as Forças Armadas
aceitam se afundar mais um pouco nesse pântano que é o governo Bolsonaro. O
primeiro ato dessa gestão foi a oferta sortida de mentiras em horário nobre. O
pronunciamento de terça-feira é de fazer corar Pinóquio. “Somos incansáveis na
luta contra o coronavírus”, disse o presidente. O mesmo do “e dai?”, do “vai
comprar vacina na casa da sua mãe”, o que acusou a imprensa de “histeria"
e promoveu incontáveis aglomerações. Bolsonaro nunca lutou contra o
coronavírus. Ele agrediu os gestores públicos que o fizeram.
Ontem,
era para mostrar que quer combater a pandemia, mas ele não resistiu. “Tratamos
também da possibilidade do tratamento precoce, isso fica a cargo do ministro da
Saúde, que respeita o direito e o dever do médico off label de tratar os
infectados”. Deixando de lado a má construção da frase, o que fica claro é que
tratou todos os presentes fora da bula. Não eram líderes de outros poderes.
Eram figurantes aceitando o presidente prescrever o oposto do que recomendou,
na terça, a Associação Médica Brasileira. Aliás, como demorou a AMB.
Tratamento
precoce, como se sabe, é o codinome do charlatanismo, do kit de ineficácia
comprovada. O médico Marcelo Queiroga, na primeira entrevista que concedeu como
ministro, ajudou a aliviar o ambiente pesado. Só de não haver mais aquela fala
sincopada de general dando bronca em recrutas já tornou melhor o clima na
entrevista coletiva. Mesmo assim, ele continua tentando se equilibrar entre
duas canoas. Se ficar com a ciência, vai ter conflito com o presidente, se
continuar fazendo concessões ao presidente, estará em conflito com seu diploma
de médico. E ele tem feito concessões. Ontem, criticou o lockdown, apesar de
admitir que a crise, desta vez, pegou o país como um todo. “Quem quer
lockdown?”, perguntou. A Fiocruz, por exemplo, órgão científico do Ministério
da Saúde, recomenda que o país pare por 14 dias. No fim da entrevista, ficou
claro que Queiroga não fora informado de mudanças na forma de registro dos
óbitos.
A atual defesa da vacinação é diferente de tudo o que Bolsonaro falou contra as vacinas, como comprovam os muitos vídeos com suas falas grosseiras. Mesmo se dermos ao presidente o imerecido benefício da dúvida, é preciso lembrá-lo de que a falta de vacina neste momento se deve exclusivamente a ele e aos erros do seu governo. O Instituto Butantan teve que brigar para produzir as vacinas que hoje encontram os braços dos brasileiros. A Fiocruz teve que superar crises diplomáticas criadas pelo governo. Bolsonaro quer mudar a cena do crime e buscar um álibi que esconda um ano de erros fatais. Erros que nos trouxeram até aqui. Aos 300 mil mortos.
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