A demissão dos três comandantes das Forças Armadas, Edson Leal Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antônio Carlos Bermudez (Aeronáutica) na tarde de ontem, 30-03-2021, e a substituição do ministro da Defesa nesta semana, compõem mais um capítulo da crise política do governo Bolsonaro, cujo desdobramento ainda é aguardado.
Para o sociólogo Luiz Werneck Vianna, a troca simultânea nos três comandos das Forças Armadas, algo inédito no país, demonstra que "a crise do governo se aprofunda, que no desespero procura remédios, serve uma cloroquina como uma solução heróica, ou qualquer outra poção mágica, como um autogolpe, que em vez de aliviar seus males bem pode agravá-los". Até o momento, diz, "o que se tentou foi a volta do regime do AI-5, mas isso não teve êxito. A Constituição foi reafirmada, ratificada, e sai, até então, vitoriosa desse processo do qual ela foi alvo de disputa desde que o governo Bolsonaro começou".
Para recuperarmos a “sanidade política e sanitária” no país e projetarmos o futuro, o sociólogo sugere que façamos um duplo movimento: olhar para trás e para frente. “Para trás, para mexermos com as nossas raízes, que têm ensejado comportamentos antissociais e esse individualismo extremado. E para frente, para procurar uma saída (...) para ver se a sociedade consegue, como o Canal de Suez, abrir caminho para o navio passar. (...)”, exemplifica.
Nesta entrevista, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Werneck Vianna diz que “o Brasil está precisando de uma nova ‘imaginação’” diante do estado em que nos encontramos. Ele cita o recente caso de aplicação clandestina de vacinas por empresários de Minas Gerais, que “é um atestado veemente da natureza dos setores das elites no Brasil, da sua forma predatória e patrimonialista”, mas também o comportamento de parte da sociedade durante a pandemia de Covid-19: “jovens se recusam a se proteger a si e aos outros, fazem baladas e festas clandestinas”.
A recuperação da sanidade, insiste, depende da “união de todos que procuram caminhos contra um governo que é genocida. Agora, materializar isso depende muito de empenho, de cabeça aberta”. Uma das urgências, destaca, é “interromper as estruturas arcaicas: as elites modernas e industriais precisariam romper com as elites agrárias tradicionais”. Para isso, menciona, “a reflexão ocupa um papel importante, assim como a política e as ciências, especialmente as Ciências Sociais têm um papel grande em demonstrar a natureza retrógrada que não se compromete”. E acrescenta: “É preciso ouvir outras vozes”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que a demissão dos comandantes das Forças Armadas significa?
Luiz Werneck Vianna - A crise do governo se
aprofunda, que no desespero procura remédios, serve uma cloroquina como uma
solução heroica, ou qualquer outra poção mágica, como um autogolpe, que em vez de
aliviar seus males bem pode agravá-los. A conferir.
IHU On-Line - Como avalia a posição do presidente na gestão das
crises que o país vive neste momento?
Luiz Werneck Vianna – Vamos devagar,
porque a situação é difícil. Eu compartilho da opinião das pessoas de bem deste
país: é um desastre, uma catástrofe. É uma experiência que precisa ser
interrompida.
IHU On-Line - O governo tem saída ou não?
Luiz Werneck Vianna – Há sempre uma
saída, inclusive, a porta dos fundos é uma saída. Agora, o governo vem perdendo as bases de
sustentação. O Congresso,
o agronegócio,
as finanças,
estão tomando uma cara política
de desentendimento, de basta. Talvez a hora ainda não tenha
chegado, mas está chegando e chegará.
Quanto aos empresários, uma palavra deve ser dita, porque isso que aconteceu em Minas [aplicação clandestina de vacinas feita na garagem da empresa de transportes Viação Saritur, em Belo Horizonte] é um atestado veemente da natureza dos setores das elites no Brasil, da sua forma predatória e patrimonialista.
Brasil precisa de nova imaginação
A sociedade também... com os jovens que se recusam a proteger a
si e aos outros, fazem baladas e festas clandestinas. O Brasil está precisando de
uma nova “imaginação”. O Brasil que nós
conhecíamos deu errado. A forma como ele vem enfrentando a pandemia é uma
demonstração disso. E, no caso dos empresários,
isso deveria merecer – bem mais do que está acontecendo – uma reclamação
poderosa, inclusive, a aplicação do Código
Penal. Em um país sério, isso teria acontecido, mas aqui, nós
já perdemos o compromisso há algum tempo, inclusive quando elegemos Bolsonaro para presidente
da República.
Agora, nós temos que ir para frente e para trás. Para trás, para
mexermos com as nossas raízes, que têm ensejado comportamentos antissociais e
esse individualismo extremado.
E para frente, para procurar uma saída. Para trás,
evidente que as nossas raízes sempre estiveram comprometidas, consolidando o
autoritarismo. Nós fomos em frente sem interrompermos as nossas raízes,
fingindo que elas tinham uma importância menor. Não é verdade; a importância
delas é decisiva. Então, este é o movimento: de um lado, é olhar para trás,
para remoer a tragédia do nosso passado e, para frente, para ver se a sociedade
consegue, como o Canal de
Suez, abrir caminho para o navio passar.
IHU On-Line - De onde pode vir essa nova imaginação para mudar o futuro e acertar as contas com o passado?
Luiz Werneck Vianna – Está vindo com
as articulações ainda
embrionárias que estão acontecendo no Congresso, fora dele, na
sociedade. Inclusive, o descalabro na condução desta
pandemia foi de tal natureza, que fez com que setores da elite,
que apoiavam o governo, começassem a decidir se afastar dele. Em alguns
setores, essa questão ficou visível, foi enérgica. Para mim, é preciso
estabelecer nexos de
aliança com todos os descontentes.
Recuperação da sanidade
Para recuperar
a sanidade política e sanitária, é preciso a união de todos que
procuram caminhos contra um governo que é genocida. Agora, materializar isso
depende muito de empenho, de cabeça aberta. De qualquer forma, temos que romper
com alguns caminhos para que este governo não continue se reproduzindo, inclusive
porque as condições internacionais são inteiramente desafortunadas para isso –
como demonstrou aquele episódio com o chanceler Ernesto Araújo [pedido de retratação por parte do embaixador da
China].
Na questão
ambiental, por exemplo, há uma crise marcada por causa da reunião de abril [reunião
dos líderes para a cúpula do clima, que será transmitida pela internet e
acontecerá nos dias 22 e 23 de abril], que [Joe] Biden vem
convocando em escala mundial para discutir o tema ambiental. O Brasil foi convidado e
deve se fazer presente. Se não se fizer presente, imagine o escândalo. Mas,
estando presente, também será um escândalo, porque estará na berlinda e todos o
acusarão de leniência, de irresponsabilidade em relação aos problemas
ambientais. As circunstâncias, nesse governo, não são nada atrativas; pelo
contrário, apontam para a perda. É claro que nada disso é automático, depende
da ação humana, de uma intervenção bem ajustada. Algumas personalidades
políticas vêm tentando isso.
Além do mais, é preciso registrar que algumas instituições estão
desempenhando um papel muito importante na formatação dessa catástrofe em que
nos encontramos: colunistas, editorialistas e imprensa escrita têm tido um
papel muito importante, mas a sociedade está inerte porque está imobilizada
pela pandemia. A
pandemia nos fecha, fecha as ruas, mas fora das ruas, na mídia, na internet, na
comunicação social via recursos não presenciais, está se falando dia a dia. Não
há um dia em que não se toque nessa questão. Na semana anterior, falaram
do ministério [das Relações Internacionais]
de Ernesto Araújo,
e hoje [29-03-2021], essa questão está na agenda com a saída de Ernesto Araújo [que
pediu demissão em 29-03-2021]. O mesmo deve ocorrer com o ministro do Meio Ambiente e
outros que representam e vinham representando o governo Bolsonaro.
O retorno do AI-5 não teve êxito. A Carta de 88 foi reafirmada
A ação do Centrão não é
dirigida para a derrubada do governo
Bolsonaro, mas para a sua derrota política no sentido de
torná-lo prisioneiro da política do Centrão, que não é uma política orientada
para uma visão leniente contra a pandemia. Muito pelo contrário: o Centrão decidiu ganhar uma
força recessiva, uma força atrasada, e está se movendo, inclusive, porque
ninguém quer afundar com o Titanic.
Quem puder escapar do Titanic,
tenta escapar e pega seu bote salva-vidas. É o que está acontecendo com o governo Bolsonaro.
Com que cara ele ganhou as eleições, que cara é essa? É a cara
do regime militar dos
anos 1960. O que se tentou foi a volta do regime
do AI-5, mas isso não teve êxito. As instituições impediram
isso: o Supremo
Tribunal Federal - STF teve um papel de protagonista
importante em frear essa escalada rumo ao retorno da política do AI-5. A Constituição foi
reafirmada, ratificada, e sai, até então, vitoriosa desse processo do qual ela
foi alvo de disputa desde que o governo Bolsonaro começou.
O governo Bolsonaro tinha como palavra de ordem: destrua-se a Carta de 88. Este
governo não teve êxito; a Carta de 88 robusteceu-se.
Abertura ao Centrão
De outra parte, o Congresso,
o próprio regime político, por sobrevivência, foi obrigado a ser o Centrão, mas ninguém se abre ao
Centrão impunemente, porque ele tem suas demandas. O Centrão não pode existir
sem o Congresso; ali é o lugar dele. Fora do Congresso, ele não é nada. O
Centrão depende das pessoas e do poder que ele conquista. Os partidos do
Centrão não têm luz própria, não são capazes de atrair movimentos de massa,
intelectuais; ele é um mosaico de interesses. Nesse sentido, o governo Bolsonaro, ao ser
obrigado a apelar para o Centrão, selou um pacto com o seu contrário.
O Centrão deseja
expurgar Bolsonaro?
Acho que não. Tenta controlá-lo, esticá-lo, trazer o governo a seu serviço. Mas
este papel não cabe no governo
Bolsonaro. Então, é uma contradição: o tema da pacificação que o Centrão propõe não
entra no figurino
de Bolsonaro, que precisa, para se reproduzir, da radicalização.
Aos poucos, fora do governo, será possível encontrar nomes
capazes de expressar a liderança sobre esse conjunto. A falta de resistência é
cada vez mais evidente e a prova dela é, neste momento, o caso de Ernesto Araújo, cuja política
anacrônica ficou na berlinda, porque todos os interesses modernos do país não
podem conviver com a política
externa de Ernesto Araújo. Isso demonstra a intervenção que a
senadora Kátia Abreu, a representante do agronegócio,
fez a ele.
IHU On-Line - Como recuperar a sanidade no país fazendo esse movimento de olhar para trás e para frente, buscando saídas na eleição de 22?
Luiz Werneck Vianna – Não basta apenas
olhar para frente. Temos que fazer um inventário dos erros da nossa formação
histórica. A escravidão continua
neste país, como profetizava Joaquim
Nabuco. A nossa história é uma história autoritária, patrimonialista. O latifúndio e a propriedade da terra são
outra criação dessa história que pesa de forma assustadora sobre o nosso
presente e o nosso futuro.
Nós precisamos interromper as estruturas arcaicas: as elites modernas e industriais precisariam
romper com as elites agrárias tradicionais.
Mas, ao contrário, se articularam a elas e essa aliança, mais o pano de fundo da escravidão,
comprometeu a história com esse movimento errático que temos de avanços e
recuos: avanços com a Carta de
88, recuo com o governo
Bolsonaro. É preciso interromper isso. E interromper isso é
romper com o nosso passado e não apenas com o nosso presente. Para isso, a
reflexão ocupa um papel importante, assim como a política e as ciências, especialmente
as Ciências Sociais têm
um papel grande em demonstrar a natureza retrógrada que não se compromete. É
uma dialética complicada: vai para frente, volta para trás. Estamos com um
barco encalhado que nem o Canal de
Suez; é preciso liberar esse barco.
IHU On-Line – Que alianças políticas podem nos conduzir nesta direção?
Luiz Werneck Vianna – Todas as forças
que de algum modo se opõem a esse estado de coisas desgraçado em que nos
encontramos. Esse trabalho ainda está em construção. Ainda não se encontrou,
por exemplo, nomes que possam vir a representar esse processo. Ulysses [Guimarães], Tancredo [Neves], nomes como esses ainda não apareceram e,
se apareceram, ainda não estão conseguindo se projetar de maneira consensual.
Tem que dar tempo ao tempo.
IHU On-Line – Como vê as disputas no campo da centro-esquerda, com o retorno do ex-presidente Lula à cena política?
Luiz Werneck Vianna – Vai depender de
arte. Tem a volta do Lula – uma
liderança relevante –, agora, é preciso ouvir outras vozes. Lula, a meu ver, faria um papel
muito mais relevante como uma peça de articulação, abdicando das suas posições
pessoais. Lula como artífice da frente seria
muito mais importante do que Lula como
candidato à presidência da República.
IHU On-Line - A crise gerada pela pandemia representa e sinaliza uma transição ou o aprofundamento do nosso passado e do nosso presente?
Luiz Werneck Vianna – Deveremos entrar
numa transição que,
desta vez, não deixe intocado o nosso passado. Desta vez, vai se ter um avanço
quanto a isso, então, a transição vai ser também dirigida para trás, vai ser
para frente e para trás.
IHU On-Line - A pandemia deixará mais traumas na sociedade brasileira?
Luiz Werneck Vianna – Mais
traumatizada do que a sociedade está... São Paulo, o estado mais rico da federação, Rio Grande do Sul, Nordeste, a crise atinge a
todos.
É claro que sem reflexão, sem pensamento, nada vai andar. Não
basta apenas um remédio; é preciso que se tenha um sentido, um propósito, uma
direção. Ainda mais agora, com o tema do meio ambiente, dos direitos humanos, de uma sociedade mais igualitária.
O tema da igualdade está
se impondo na agenda internacional. Novos tempos, novas agendas. Não podemos
mais ficar nos limites de um nacional-popular.
Temos que pensar em uma sociedade
cosmopolita, quando a pandemia nos afunda a pensar. Nenhuma
sociedade sai da pandemia sozinha, é preciso um esforço mundial. A pandemia
varreu as fronteiras em toda parte.
O Papa Francisco tem
essa compreensão ajustada da natureza do presente, quando se refere à paz, ao
meio ambiente, à igualdade. Ele é uma força moral relevante; há outras.
IHU On-Line - O que mais o tem angustiado neste momento que estamos vivendo no país?
Luiz Werneck Vianna – São tantas
coisas... Mas pessoalmente o que mais angustia é o isolamento, a incapacidade de
estar em comunicação presencial com o outro. Eu não sinto a temperatura das
pessoas e preciso da presença. A nossa comunicação está como que truncada pela
falta de interlocução presencial. As ruas livres seriam uma maneira mais rápida e
veloz de interromper a tragédia em que nos encontramos, para acharmos uma
saída. Mas, enfim, é o caminho que nos cabe palmilhar. Apesar de todas as
dificuldades, estamos avançando e avançaremos. Quem viver, verá.
*Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997), A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999) e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu livro intitulado Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), que é composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU
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