Qualquer
ato é um escárnio às vítimas dos crimes perpetrados pela ditadura
Supunha-se
que nada haveria de causar mais horror do que a insistente cantilena
negacionista do presidente da República face ao extermínio diário de mais de 3.000 vidas
pela Covid-19.
Neste momento, o Brasil assiste a uma escalada de ameaças à democracia. Estamos
diante de mais
uma grave crise, desencadeada pela demissão
do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, por defender as
Forças Armadas como instituições de Estado diante dos arroubos golpistas
do presidente.
Os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica renunciaram aos cargos em protesto.
Outro episódio relevante para esta quarta-feira (31) foi a decisão
do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), em Recife, de que
proibir reverências ao golpe de 1964 significaria “negar a discussão sobre
qualquer perspectiva da história, o que seria um contrassenso em ambientes
democráticos, visto que o Estado democrático de Direito (artigo 1º, caput,
Constituição da República) pressupõe o pluralismo de ideais e projetos”.
Entendem que coibir tal comemoração “representa impor somente um tipo de projeto para a sociedade brasileira, sem possibilitar a discussão das visões dos fatos do passado”. Os magistrados proferiram que a exaltação do golpe “não ofende os postulados do Estado democrático de Direito nem os valores constitucionais da separação dos poderes ou da liberdade”.
o golpe
militar: é fato provado e documentado que, de 1964 a 1985, prevaleceu no
Brasil um regime de exceção que torturou, executou, “fez desaparecer” milhares
de pessoas — entre elas, estudantes, militantes políticos e sindicalistas.
Todas as violações de direitos humanos, os crimes contra a humanidade
praticados pela ditadura militar, além da bibliografia nacional e
internacional, estão registrados fartamente em arquivos diplomáticos, por
exemplo, dos Estados Unidos, da França e do Reino Unido.
Há
relatórios abundantes sobre a ditadura nos órgãos da Comissão de Direitos
Humanos da ONU, assim como na Comissão e na Corte Interamericana de Direitos
Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em relatórios da Comissão
Internacional de Juristas, da Anistia Internacional e do Tribunal Russell.
Os
magistrados primam por ignorância crassa do relatório
da Comissão Nacional da Verdade (CNV), elaborado a partir dos
depoimentos de centenas de vítimas e seus familiares, bem como de documentação
oficial disponível nos arquivos de órgãos governamentais brasileiros, como o Serviço
Nacional de Informações (SNI), o Centro de
Informações do Exterior, do Ministério das Relações Exteriores, e alguns
arquivos militares.
As
investigações realizadas pela CNV comprovaram que o Estado brasileiro na
ditadura foi responsável por graves violações de direitos humanos, perpetradas
de forma sistemática e em função de decisões que envolveram as cúpulas dos
sucessivos governos do período.
Os
sequestros, as detenções arbitrárias, a tortura, as execuções, os 434 casos de
mortes e desaparecimentos de cidadãos não constituíam eventuais “excessos” ou
episódicos “abusos”. Resultaram de política de Estado, acatada por uma cadeia
de comando que ia do general presidente até os órgãos de inteligência e
repressão subordinados às Forças Armadas. Um dos grandes chefes da tortura, o coronel Ustra,
reverenciado pela extrema direita, era lotado no gabinete do ministro do
Exército.
Essa realidade, ao contrário do que decidiram os magistrados do TRF-5, torna incompatível com os princípios que regem o Estado democrático de Direito a realização de eventos oficiais de celebração do golpe militar; devem, sim, ser objeto de rigorosa proibição.
Seria
um escárnio para as vítimas dos crimes perpetrados pela ditadura militar e um
enorme constrangimento para as atuais Forças Armadas, que hoje não querem mais
se envolver com aventuras golpistas nem em ditaduras como em 1964.
*Membro da Comissão Arns, foi coordenador da Comissão Nacional da Verdade (2013) e ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos (2001-02, governo FHC)
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