quarta-feira, 31 de março de 2021

Militares devem evitar retrocesso democrático – Opinião / O Globo

Logo na véspera deste 31 de março que marca os 57 anos do golpe militar de 1964, as Forças Armadas entraram numa crise sem paralelo em pelo menos 40 anos. A demissão do general Fernando Azevedo e Silva do Ministério da Defesa e a consequente saída dos três comandantes militares, Edson Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antônio Carlos Bermudez (Aeronáutica), demonstraram que não será fácil ao presidente Jair Bolsonaro usá-las para fins políticos. Está claro, em que pese a coincidência no calendário, que o cenário institucional hoje é bem diferente. Não há nenhuma indicação de que os militares aceitariam deixar de se submeter à Constituição e ao Estado democrático de direito, para embarcar em qualquer aventura da delirante fantasia bolsonarista.

Azevedo e Silva registrou em sua carta de demissão que trabalhou para preservar as Forças Armadas como “instituições de Estado”. É exatamente o que são. E assim devem permanecer, quem quer que sejam os sucessores dos três comandantes. Azevedo e Silva deu um recado claro a seu sucessor, general Walter Braga Netto, e a Bolsonaro: se houver tentativa de uso político das Forças Armadas, haverá obstáculos não só entre militares, mas também no Congresso, no Supremo e nas demais instituições da República. Bolsonaro precisa entender que a condição de “chefe supremo das Forças Armadas” que lhe concede a Constituição não significa que tenha poder absoluto. As três Forças estão sujeitas à Carta. Não são um Poder autônomo, nem um guardião à margem do Estado de direito. Não podem atentar contra a Carta sem pagar um preço.

Capitão expulso do Exército por indisciplina, Bolsonaro dedicou sua vida política a atrair apoio entre militares de baixa patente e policiais. Eleito presidente, aumentou as ambições. Inspirado talvez no caudilho venezuelano Hugo Chávez, parece almejar uma mistura de governo e Forças Armadas no poder. É a receita da tragédia. O modelo chavista destruiu a Venezuela. É preciso que os militares brasileiros não se curvem à pressão do presidente para convertê-los em braço armado a serviço de um grupo político, no pior estilo da velha América Latina.

Ao criticar medidas de governadores e prefeitos para deter o novo coronavírus, Bolsonaro afirmou que “meu Exército” não aceitaria lockdown, que comparou equivocadamente a “estado de sítio”. Ora, o Exército não tem dono. Insinuar a intenção de propor ao Congresso um período de supressão de direitos aproveitando a pandemia é simplesmente inadmissível.

Os dois anos de governo Bolsonaro se contrapõem a mais de três décadas de poder civil, o mais longo período da República sem ruptura institucional. Um dos motivos para isso foi a reflexão interna que as próprias Forças Armadas promoveram depois dos 21 anos de ditadura. Os militares entenderam seu papel institucional e, acertadamente, se distanciaram da política. Não é crível que aceitem agora conspurcar a farda se convertendo em instrumento do bolsonarismo. Os tempos em que os quartéis faziam parte do jogo político fizeram mal à política e aos militares.

Bolsonaro se caracteriza pelo desassombro e pelo desrespeito a limites. Tornou o Brasil pária mundial pela atuação no meio ambiente, no combate à Covid-19 e noutras áreas. Para o próprio bem, os militares não devem compactuar com os devaneios de um impensável retrocesso democrático.

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