Quarentenas
e isolamento são medidas conservadoras?
Vivemos
em tempos de decadência moral e espiritual. Os homens perderam a coragem. “Onde
foram parar os machos?”, clama ávido um famoso assecla do bolsonarismo. E não
pra menos! Pessoas em
casa, fechadinhas, sem trabalhar, ganhando auxílio, com medo de um minúsculo
vírus; isso não seria motivo de vergonha a nossos corajosos
ancestrais?
Em
uma variação do mesmo tema, o lamento ganha contornos espirituais. O homem
moderno esqueceu-se de Deus e da vida eterna, e por isso é tão neuroticamente
obcecado com a saúde. Afinal, a
morte vem para todos. Por fim, corre o argumento, medidas de
isolamento violam nossos santos direitos individuais, que não admitem restrição
nenhuma. Não foi assim que o Ocidente se ergueu?
É bela a disposição de nossos conservadores em querer proteger nossa civilização. Mas é uma pena que ela não venha acompanhada de qualquer conhecimento histórico sobre essa civilização.
Ao
contrário da imaginação conservadora, nossos
antepassados de carne e osso reagiram às epidemias de seu tempo de maneiras
similares às nossas. A própria ideia de uma quarentena aplicada
a navios e caravanas que chegam de fora durante uma peste foi uma inovação da
peste negra. E as medidas não paravam por aí.
Para
impedir que a infecção saísse de uma cidade e fosse para outra, as autoridades
impunham um cordão sanitário ao redor da cidade infectada: ninguém mais podia
sair até que a epidemia passasse.
Proibição
de aglomerações e festas, de jogos e teatros (aliás, Shakespeare escreveu seus
poemas mais famosos durante uma longa quarentena sem teatro de 1592 a 93).
Mesmo procissões religiosas foram restritas em diversas ocasiões, e muitas
igrejas fechavam as portas. Nos piores momentos, os próprios fiéis deixavam de
ir.
Algumas
epidemias foram surpreendentemente bem documentadas. É o caso
da peste de 1665 em Londres. Seguindo a prática comum, qualquer pessoa
visivelmente infectada era imediatamente apreendida e levada a uma casa de
pestilência, onde provavelmente morreria, para não infectar os saudáveis.
No
caso de casas suspeitas, a ordem das autoridades era pintar um X vermelho na
porta e colocar um guarda na rua para impedir que qualquer morador saísse
delas.
Mas
nem só de maldade era feita a política: para ajudar os desesperados e as
cidades isoladas, havia coletas adicionais de impostos e doações de
alimento. Exatamente
como os auxílios que tantos países, inclusive o Brasil, utilizaram durante esta
pandemia.
No
início do século 20, nosso conhecimento já tinha avançado bastante. Quando a
gripe espanhola tomou o mundo de assalto em 1918, as autoridades de
vários países impuseram medidas muito similares às que vemos hoje: fechamento
de escolas, restaurantes, comércios não essenciais, igrejas, teatros e
aglomerações públicas em geral. Uso de máscara de pano para conter o contágio.
Medidas
extremas para lidar com emergências de saúde pública estão conosco desde a
Antiguidade. Não são invenção de tiranos e comunistas. A partir do momento que
o perigo passa, as restrições vão embora. É o que já
vemos em Israel, na Inglaterra, na Austrália.
Os
delicados “conservadores” de hoje, para quem uma máscara de pano parece um
sacrifício duro demais, associam essas medidas à tirania comuno-globalista. Mal
sabem que são todas parte de sua amada civilização ocidental.
*Economista, mestre em filosofia pela USP.
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