O
presidente tem claras dificuldades para lidar com relacionamentos mediados por
instituições e regras formais, com aquilo que ele desdenha, mas que é decisivo
na democracia
Uma
certa frequência, nos jornais, de artigos que remetem a política ao tema da
formação da personalidade do presidente da República indica preocupação com o
desencontro entre o poder e o poderoso.
O
problemático desencaixe entre a pessoa no poder e a instituição que o define
suscita mais diagnósticos do que interpretações. É um modo de compreender os
fatores extra políticos da política quando ela sai do padrão que lhe é próprio.
O que é um fator de alarme com a distorção do processo político, o poder
confundido com o mando pessoal. Sugere a quem envereda por essa linha de
análise que podemos estar em face de um desvio comportamental e não apenas em
face de um projeto político anômalo.
Se
o agente dominante da primeira socialização do presidente foi o pai que o
induziu a optar pela carreira militar, como é ressaltado nas análises, teve no
quartel a segunda socialização, desdobramento da primeira. Nos dois momentos há
indicações de insuficiências de socialização para as solicitações plurais dos
vários âmbitos da sociedade, pois é neles que a maioria de nós vive.
Aliás,
a consciência social e política do que era a socialização limitante dos grupos
de confinamento formativo já estava presente nas interdições da condição de
eleitor na Constituição de 1891.
O quartel é o que o sociólogo canadense Erving Goffman (1922-1982) define como instituição total, isto é, amuralhada e restritiva à sociabilidade dos internos, fechada à diversificação social.
De
certo modo, as instituições totais, as de monopólio do processo socializador de
seus internos, são também meios de dessocialização dos que lhes são entregues,
nelas despojados das referências do caráter aberto e pluralista da sociedade.
A
compreensão do comportamento politicamente anômalo em relação às previsões
constitucionais, legais e da tradição republicana e democrática talvez fique
mais completa se levarmos em conta a situação social de referência política do
presidente da República na atualidade.
Já
ficou evidente que ele, desde antes da posse, vem criando, ao seu redor, uma
sociedade própria de referência, fechada e hierarquizada. Ela cumpre a função
de dar-lhe o tipo de segurança personalista e anti-institucional, pois,
desprovido da cumplicidade das instituições, das leis e da Constituição.
Compõem-na, em primeiro lugar, os próprios filhos, seus coadjuvantes mais
notórios.
É
uma sociedade paralela, grupo de referência desconectado do real, dominado
pelos processos interativos cotidianos, face a face. Bolsonaro tem claras
dificuldades para lidar com relacionamentos mediados por instituições e regras
formais, com aquilo que ele desdenha, mas que é decisivo na democracia. A
reunião de 22 de abril foi uma demonstração disso.
Ele
se cercou de gente que pensa como ele ou finge pensar, que tem as mesmas
limitações culturais e políticas que ele tem para compreender o que se passa
além das paredes da sala em que o governo se reúne ou além do amontoamento de
bajuladores que, na porta do palácio ou na rua, lhe dão a segurança teatral de
que carece.
Essas
relações reforçam o imaginário e a subjetividade do governante para a
sociabilidade política que, em caso assim, é provisória e precária. Durará,
quando muito, os quatro anos de seu mandato. Ajusta-se às suas carências de
afirmação e à insegurança em relação ao que não é do mundo de sua formação.
Constitui
uma muleta que lhe permite sobreviver no poder, protegido de sua própria
intuição de que é frágil e dos indícios de que é um ser humano fora do lugar.
Se não fosse esse cerco protetivo, provavelmente acabaria tomando consciência
de suas fragilidades políticas e de seu despreparo e correria o risco de
sucumbir. Sobretudo em face das decisões erradas na questão da pandemia.
A
obstinação em manter no poder gente cujo tipo de personalidade se aproxima
muito da sua é uma boa indicação nesse sentido. A mobilização de militares e de
ex-militares pela estrutura de poder, ao seu redor, é um faz de conta,
sobretudo quanto aos reformados que não têm postos de comando nem têm condições
de comandar nada.
O
ajuntamento subversivo de que o presidente participou na porta de um quartel do
Exército em Brasília é outra indicação dessa teatralidade de sustentação
imaginária do presidente.
As
ameaças dos apoiadores ao STF é, provavelmente, a maior indicação de que ele
está com medo na medida em que navega no que pode ser a margem da legalidade. É
o comportamento de quem de fato não assumiu a Presidência ao não assumir-se na
Presidência.
Eu
lembraria que Lula, nos primeiros meses de seu primeiro governo, comportou-se
mais ou menos do mesmo modo. Manteve um discurso de oposição ao Estado, embora
já fosse governo.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).
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