Que
país legaremos aos nossos filhos e netos com esse modelo de despreparados
movidos por um darwinismo social?
O
governo Bolsonaro representa a vitória dos piores quadros contra as melhores
cabeças do país. Claro que há exceções, mas a regra é a do triunfo da ruindade,
à semelhança do despreparo técnico e político do presidente. Numa situação como
essa, sem paralelo na história brasileira, é preciso mais do que uma carta
ressaltando o rotundo fracasso no combate à covid-19. É fundamental que a
sociedade e a elite do país pressionem para mudar diversas políticas públicas,
em suas concepções e seus dirigentes despreparados, antes que a tragédia se
aprofunde mais, com efeitos perversos para todos.
A famosa “Carta do PIB e seus economistas”, como foi chamada na semana passada, isolou completamente o governo, que se arrisca a ficar com o apoio apenas dos fiéis do bolsonarismo. O grupo com maior faro de poder no país, o Centrão, já percebeu que, mantida a linha atual de combate à pandemia, quem apoiar Bolsonaro terá dificuldades nas eleições estaduais e parlamentares de 2022. Muitos criticaram o movimento da elite social e dos congressistas, que só abriram os olhos agora, quando a catastrófica política sanitária colocou o Brasil numa situação próxima à barbárie. Trata-se de uma crítica pertinente, mas não é o maior problema dessa movimentação política.
Quem
quiser se mobilizar contra a situação reinante, seja que grupo for, precisa
fazer não uma, mas várias cartas. Obviamente que a questão mais urgente é a
pandemia, e já foi um avanço a elite brasileira sair da sua narrativa única em
torno da economia. Todavia, a incompetência técnica, a insensibilidade política
e humanitária, a criação de narrativas sem pé nem cabeça e o desejo maior de
destruir o que existe se sobrepujando à capacidade de se construir alternativas
são características que estão em quase todas as partes da Esplanada dos
Ministérios. O fracasso em cada política pública afeta os tempos presente e
futuro do país.
Na
política externa, a opção pela política antiglobalista da extrema direita
tornou o país um pária internacional. Esse projeto já atrapalhou a negociação
por vacinas, somando-se a outros equívocos absurdos da política sanitária. Só
que os erros dessa canhestra visão diplomática vão atrapalhar outros objetivos
da nação: com a atual diretriz, não há chances de o Brasil entrar na OCDE, não
haverá diálogo relevante com a América Latina, não há espaço para ampliar a
cooperação com a China e as relações com o governo Biden serão muito difíceis.
As relações internacionais geralmente são menos visíveis para a população em
geral e, por isso, é fundamental ressaltar que os erros atuais podem custar empregos,
oportunidades de mercado e parcerias geopolíticas fundamentais ao país.
O
estrago na área ambiental pode ser ainda maior. O meio ambiente se tornou um
dos principais temas da agenda internacional contemporânea e, ao mesmo tempo,
constitui um ativo estratégico brasileiro na sua relação com o mundo. Ter uma
política desastrosa sobre esta questão, como há hoje com o ministro Ricardo
Salles, pode gerar obstruções políticas e econômicas vindas do mundo
desenvolvido. Além disso, quanto mais tempo o país incentivar na Amazônia o
faroeste dos desmatadores, garimpeiros e da agricultura ou pecuária predatória,
mais isso poderá ter efeitos sobre o próprio clima do país, atingindo
particularmente o regime de chuvas do centro-sul. Isso é um tiro no pé, podendo
afetar o lado mais dinâmico da economia brasileira.
Tal
como na política externa, a gestão ambiental bolsonarista não se baseia em
evidências científicas, em práticas que estão dando certo no mundo ou que foram
bem-sucedidas no Brasil. Vale relembrar: em ambas as áreas, o país foi uma
referência nas últimas décadas, comandadas por profissionais de grande
qualidade. Em seu lugar, entrou o pior time possível, gestores com quase
nenhuma experiência e com ideias, no mínimo, exóticas. Fica a lição que não só
a atuação equivocada em política econômica custa caro ao país.
Um
dos exemplos mais paradigmáticos do “governo dos piores” que administra o país
é a educação. O MEC já teve três ministros efetivos e um que não chegou a
assumir porque mentiu sobre seu currículo - fato simbólico de um governo com
quadros despreparados para a função. Em meio à pandemia, que fechou escolas e
agravou a desigualdade entre os alunos, o ministério não fez praticamente nada
para ao menos reduzir os efeitos dessa crise sanitária. O ministro chegou a
dizer que a responsabilidade era dos estados e municípios, lavando as mãos e
demonstrando sua insensibilidade e incompetência.
Pior:
os ideólogos do MEC, que não entendem nada de gestão pública, só propõem ideias
que destoam completamente das experiências bem-sucedidas, tanto
internacionalmente como no Brasil. Há modelos educacionais com grande sucesso
no país, como nos exemplos do Ceará e de Pernambuco, e o governo federal não os
leva em consideração para fazer suas propostas. A comparação piora quando se
observa que o país não está seguindo o que é feito pelos 30 países com melhores
resultados no exame internacional do Pisa (Programme for International Students
Assessment), adotando uma agenda que não é utilizada como referência em nenhum
lugar relevante do mundo.
No
lugar das boas práticas internacionais, o MEC abraçou o homeschooling (educação
domiciliar), a escola sem partido, a militarização da educação e o
enfraquecimento dos modelos de avaliação. Todas essas medidas enfraquecem
institucionalmente as escolas, desprofissionalizam o ofício do professor,
retiram do Estado o papel de pensar um currículo universal, concebem o aluno
como um sujeito dependente apenas das regras definidas por suas famílias, em
suma, destroem um legado de cerca de 30 anos de reformas educacionais que
fizeram a escolarização chegar aos mais pobres. Eis aí mais um viés do “governo
dos piores” montado por Bolsonaro: ele não admite nem ataca profundamente o
problema da desigualdade. Que país legaremos aos nossos filhos e netos com esse
modelo de despreparados movidos por um darwinismo social?
Uma
“Carta do PIB” ou de qualquer outro segmento social não pode negligenciar que o
governo Bolsonaro está destruindo a principal ponte para o futuro, que é a
educação. Óbvio que a tragédia na saúde assusta mais no curto prazo porque
estão morrendo milhares de pessoas. Sem ignorar esse fato, é preciso evitar o
desmonte completo da política educacional, que agora chegou ao Inep, principal
órgão de pesquisa e avaliação do país. Destruir esse órgão é garantir a vitória
da ideologia de extrema direita sobre a ciência.
Boa
parte daqueles que não são bolsonaristas-raiz votaram no atual presidente por
causa da proposta de política econômica. É bem provável que estejam agora
insatisfeitos com os resultados, afinal a política liberal prometida está bem
longe de ser colocada na prática. Verdade que a equipe econômica, quando
comparada ao resto do governo, é quase um oásis. Porém, mesmo essa
possibilidade de ilha de excelência foi frustrada por dois fatos. Primeiro,
grande parcela do grupo foi embora antes de o governo terminar. Frustrados com
a prática efetiva, pensaram que não poderiam manchar seus currículos com uma
experiência malsucedida.
Além
disso, a competência de gestão não é apenas técnica, pois as habilidades
relacionais e de ação política são variáveis-chave dos bons governos. Basta
lembrar de outras equipes econômicas que fizeram planos de estabilização e
reformas amplas bem-sucedidas. Esse critério claramente piora a avaliação de
Paulo Guedes. Uma liderança pública efetiva sabe planejar bem seus projetos,
consegue motivar todos os membros do ministério, tem bom diálogo com a
sociedade e, sobretudo, com os políticos. E, acima de tudo, deve gerar o menor
nível de conflito possível, algo que só atrapalha os resultados da política
econômica.
Por
estes critérios, o Ministério da Economia está longe do modelo ideal.
Precisaria ter lideranças como Felipe Salto, presidente da Instituição Fiscal
Independente: elegante, dialoga bem com todas as partes, conhece profundamente
o tema e entrega o que planeja. Esse exemplo não serve aqui apenas para
polemizar. Cito esse gestor para dizer algo fundamental: o Brasil tem gente
milhões de vezes mais qualificada para fazer políticas de saúde, educação, meio
ambiente, relações exteriores e política econômica. Poderíamos ter agora um
“governo dos melhores”, vindo de partidos diferentes, em vez desse grupo de
despreparados que estão levando o país para o buraco.
A
substituição do atual “governo dos piores” por um “governo dos melhores”
depende de três coisas. Primeiro, escolher gente mais qualificada, técnica e
politicamente, que saiba o que efetivamente dá certo em cada política pública.
Segundo, ampliar o leque de temas importantes para o país, indo além da questão
econômica, evitando assim a miopia que tem caracterizado o debate público
brasileiro. Por fim, fazer cartas mais amplas em termos de composição social e
visões de mundo, pois só desse modo será possível gerar um movimento profundo
de transformação da realidade para todos. Basta lembrar que o maior problema do
Brasil é a desigualdade, e combatê-la vai exigir uma aliança de várias forças
sociais, incluindo os mais afetados por esse modelo perverso, que ficou mais
patente com a pandemia.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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