- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
As manifestações antibolsonaristas do
sábado foram o primeiro e eloquente grito que retira do governo a discutível e
na prática desmentida legitimidade
A pandemia agravou - e muito - as
insuficiências do novo poder decorrente, na prática, dos resultados anômalos
das eleições de 2018. O sistema conceitual dos novos governantes era simples
expressão do senso comum pobre de setores da classe média. Classe
eleitoralmente aumentada com os resultados inevitáveis da política social
petista e sua retórica socialmente ufanista. Mais fantasia do que realidade.
Drenado pelo deslocamento da lealdade de
classe dessa classe média sem consistência, o PT criou o vazio político que
acabaria preenchido por representantes da mediocridade residual da ditadura
militar. Motivados pela aspiração de poder e riqueza, mas frustrada e, por
isso, ressentida, pelos logros insuficientes das reduzidas oportunidades de
ascensão social da era petista.
A classe média emergente, que nutriu, em
algum momento, simpatia pelo PT, não era necessariamente petista. Apenas
inflava as opções eleitorais por Lula e por candidatos petistas. Mas, à medida
que o partido foi perdendo fôlego, ela foi se bandeando para outras formas de
radicalismo e de intolerância.
Além disso, a ascensão social dos setores
médios é também alteração de sua consciência social. A referência de classe do
seu senso comum se desloca para os valores e concepções das categorias sociais
extremistas na valorização do modo de vida a que aspiram. Estamos vendo isso
aqui.
No PT e em seus grupos de apoio,
especialmente na igreja, a opção preferencial pelos pobres não levou em conta
que os pobres não consideram a pobreza uma virtude e, sim, um castigo injusto.
Essa premissa teológica não tem condições antropológicas de se transformar numa
práxis de superação de contradições e injustiças decorrentes, que revolucione e
transforme a sociedade em nome do bem comum.
A práxis tem seus momentos, da descoberta científica e interpretativa de suas condições e possibilidades à complicada tarefa de traduzi-la em prática social transformadora.
Os pobres, como os operários, são
protagonistas do processo histórico e das transformações sociais unicamente
através de mediações. Se as mediações são frágeis e inconsistentes, não podem
levar da teoria à prática, do opressivo ao libertador.
No petismo, o discurso ideológico ainda mantinha
algum nexo de inspiração e referência nas revelações da categoria social de sua
referência prioritária, a dos trabalhadores e de sua situação social.
No discurso autoritário e antidemocrático
do bolsonarismo, o espaço das ideias estava todo aberto à falta de ideias, às
manipulações de pseudofilósofos, às simplificações enganadoras de uma visão
superficial do mundo, desenraizada.
O bolsonarismo não conseguiu convencer as
dezenas de milhões de brasileiros que nele não votaram nas eleições de 2018 de
que tivesse alguma virtude política, um projeto de nação, uma bandeira do bem
comum.
Em face da possibilidade de um confronto
eleitoral, em 2022, entre esquerda e direita, entre Lula e Bolsonaro, para
compreender o que pode acontecer é necessário ter em conta a enorme e
possivelmente decisiva diferença entre os dois. Lula é um filho do povo, uma
criação da história das classes subalternas, um conhecedor do Brasil, da
periferia urbana ao país profundo, da nação próspera à nação brasileira da
dolorosa exclusão social.
As manifestações antibolsonaristas do
sábado, dia 29 de maio, em 270 médias e grandes cidades brasileiras, em favor
da vida e do direito do cidadão à vacina e ao auxílio emergencial, foram o
primeiro e eloquente grito que retira do governo a discutível e na prática
desmentida legitimidade.
Um fato que representa uma reversão na
chave que explicava a anômala e irresistível ascensão do bolsonarismo: o
governo sobreviveu até aqui por falta de manifestações de rua dos descontentes
e das oposições. O respeito às regras de segurança na pandemia fez o vírus da
covid-19 um cúmplice só temporário do bolsonarismo.
Alguém comentou, no dia das manifestações,
que das cerca de 450 mil vítimas da pandemia, milhares poderiam ter sido salvas
se o governo governasse, tivesse mostrado competência política no enfrentamento
da doença. Se não tivesse se dedicado preferencialmente à bravata pública em
desrespeito às normas sanitárias do bom senso e dos próprios cientistas e
médicos.
Em consequência, se é para morrer docilmente
fechado em casa, sem a vacinação e as providências correlatas, sem expectativa
de que o governo respeite a vida e os direitos da população, então é melhor
morrer lutando. A vida emerge como uma necessidade radical, o fenômeno mais
decisivo de todas as rupturas políticas na história social.
A ida para a rua pode ser o começo de um
grande movimento social pela vida, o do “vamos pegá-los”!
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar
Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia
Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de
Fábrica" (Ateliê).
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