O papo hoje é curto, mas tenta não perder
a fineza e a afinidade com um esforço de reflexão. Parte do panelaço de
quarta-feira passada, quando o protesto se fez sem abrir nossa guarda sanitária
ao vírus. Foi expressão artesanal da atitude inconformada do país com o drama
que lhe vem sendo imposto. A fala de um país pode ser mensurada quando, na urna
eletrônica – símbolo mor da nossa moderna institucionalidade democrática, que
traduz, para o cidadão comum, a letra da Constituição - o eleitor usa seus dedos indevassáveis
como mensageiros do cérebro e do coração. Mas em momentos como o de um panelaço
como aquele, a fala do país pode ser sentida como linguagem comum, mesmo por
quem, como disse Gil, não sabe que também quer o que o ruído exige. Exceto os
fanáticos da desarmonia (que vivem num outro país espiritual, que invadiu e
tenta ocupar o nosso), não há quem não simpatize com a ideia de mandar os
malditos embora.
Sigo agora pela sombria quinta-feira, dia
seguinte ao panelaço, na qual o mesmo país travou contato com mais um capítulo
do infortúnio corrente. Ficou sabendo
que o comando do Exército deixou de lado sua rotina institucional mais
característica - a de cumprir regulamentos - ao lidar de modo leniente com uma
infração gravíssima de um general de divisão que – depois de ter executado, por
meses, a mando de um capitão subversivo, o serviço abjeto de desarmar o país
contra um inimigo externo devastador - prestou-se ao papel de cabo eleitoral
explícito desse mesmo chefe, auferindo novo emprego.
A informação é clara e não nos é dado ignorá-la. Panelaços são básicos, mas não geram mudanças por si. É preciso que as instituições escutem e revoguem o universo paralelo em que o presidente da República se instala para fazer provocações a granel em suas lives, cavalgadas e outras exposições afrontosas à dor cotidiana dos brasileiros e esparsos pronunciamentos hipócritas, fantasiado e customizado como presidente “normal”. Além do panelaço cívico, o próprio olho cego do exterminador, vagando tenso à procura da próxima vítima nas entrelinhas do teleprompter, revela o universo patológico da demagogia fascista em que ele, seus áulicos, escribas, comunicadores e militantes operam o script do golpismo.
Tudo tem aparência irracional, mas não
podemos nos iludir. Não são desse tipo as palavras e obras do presidente (os pensamentos,
caso existam na obscuridade, não há como saber ao certo quais e o que são),
tampouco pode ser acessado pela chave da irracionalidade o sentido da decisão
do comando do Exército. O ex-ministro Raul Jungmann, reconhecido e lúcido
conhecedor do assunto, admite, como diagnóstico, que essa nova escaramuça militar
não indica que Bolsonaro terá a cumplicidade da instituição em seu fito de
desmoralizá-la e dividi-la. O Exército, em sua interpretação, teria recuado
para não dar a Bolsonaro a chance de trocar de novo o Alto Comando, mas não
será levado de roldão à aventura golpista do presidente. Mas acrescenta, demonstrando consciência de
um sinal amarelo, que é preciso agir enquanto é tempo. E aponta o caminho de
comprometer o Congresso Nacional com essa noção de urgência, regulamentando a
relação militares/governo. É de fato um bom norte prático colocar esse tema na
pauta do parlamento para fixar regras que,
sem dubiedades, salvaguardem o país de uma incabível imputação, às forças
armadas, de foros de instituição moderadora, mas também respaldem sua posição
institucional contra investidas de qualquer presidente autocrata. É, também, um
bom teste para verificar se, noves fora a intensa relação pragmática que ali se
dá entre o governo e o dito centrão, continua firme naquele poder da República a
posição institucional de colocar diques ao golpismo, como foi feito há três
meses, no caso Daniel Silveira.
Vale notar que a Câmara dos Deputados se
sai melhor quando está sob holofotes. Na penumbra, como se encontra desde quando,
com a instalação da CPI da pandemia, todos os olhares e expectativas voltaram-se,
imprudentemente, para a pauta investigativa do Senado, a Câmara tem sido
terreno maleável a que o governo passe a sua boiada. Basta comparar as pautas
vencidas por essa Casa antes e depois da CPI. Quanto ao Senado, vale notar –
como fiz na semana passada - que sumiu a voz do seu equilibrado presidente e só
se ouve o trio de alvoroçados que comanda aquela comissão. Melhor dizendo, que
disputa seu comando ou, ao menos, o foco dos holofotes. Faz falta não só o
presidente, cuja presença foi notada nos dois primeiros meses de sua gestão,
como um plenário prudente, forte tradição do Senado que parece estar
temporariamente revogada pela safra eleita no clima novidadeiro de 2018. A
pauta sugerida por Jungmann é excelente ocasião para o Congresso voltar ao jogo
institucional que lhe é mais próprio e reagir às tentativas de emasculá-lo nas
sombras ou de convertê-lo em picadeiro.
Por fim, chego à sexta-feira em que se
divulga um desabafo da deputada Manuela D’Avilla, revelador do lado mais opaco
e imundo do universo paralelo para o qual a extrema-direita tem tentado
arrastar o país. Ela própria e sua filha de cinco anos são alvos de ameaças,
após uma foto da criança, contra a qual a ameaça é de estrupo, ter sido
criminosamente difundida nas redes a partir de familiares de colegas da escola
que ela frequenta. A sensação de falta de limites no plano do cotidiano privado
é análoga à de invasão do mundo público pela estratégia golpista. Fascismo, moeda de duas caras que violou a
intimidade dessa criança gaúcha e que já fez, em Recife, vítimas insólitas de
olhos vazados no exercício do direito de ir e vir, direito hipocritamente
alardeado pelo sequestrador, em chave egoísta e selvagem.
Essa dimensão do drama brasileiro precisa
vir cada vez mais à tona. Para que uma frente cívica e política avance, como rota
racional para defender a democracia e as instituições e, inclusive, construir
alternativa eleitoral, é preciso tecer ao seu lado (não na sua contramão) uma
rede de solidariedade humanitária que valorize o que Rubem Barboza Filho chamou
de linguagem dos afetos. Nessa linguagem, a energia que a indignação mobiliza
amplia a frente, encontrando-se com a reflexão, estimulando seu compromisso
prático de ir além da crítica, sem que esse estímulo pretenda substituir essa
reflexão e a sua prudência intrínseca como as guias da ação política. O apelo
embutido na revelação de Manuela dispensa vanguardas. É agregador porque
desperta um tipo de emoção que sugere ação coletiva e solidária entre pessoas
comuns. Trata-se de energia cívica, conversível em política positiva.
*Cientista político e professor da UFBa.
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