Valor Econômico
Relatório final da CPI não será peça de
factoide, diz Vieira
Em 33 anos de retomada democrática, os
brasileiros discutem pela terceira vez a possibilidade de um impeachment
presidencial. Os alvos mudam, mas nesse período, um personagem não perde o
encontro com a história: o jurista Miguel Reale Júnior.
Ex-ministro da Justiça e professor titular
de direito penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP),
ele coordena a comissão de juristas que subsidia a CPI da Covid, a fim de
adequar os fatos investigados aos respectivos tipos jurídicos.
Reale Júnior tem currículo para a
empreitada. Em 2016, foi um dos autores do pedido de impedimento da presidente
Dilma Rousseff, ao lado do jurista Hélio Bicudo, morto em 2018, e da advogada
Janaína Paschoal (PSL-SP), deputada estadual. Antes, em 1992, ele já havia
participado da redação do pedido de impeachment de Fernando Collor.
O grupo de juristas atua sob a coordenação do gabinete do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), autor do requerimento para constituição do grupo. A senadora Simone Tebet (MDB-MS) vai se juntar a Vieira na condução desses trabalhos. Apesar do recesso, está prevista uma reunião de ambos com os juristas ainda nesta semana.
Segundo Vieira, a missão dos juristas junto
à CPI é evitar a dispersão das informações no relatório final do senador Renan
Calheiros (MDB-AL), ou a adoção de uma interpretação muito fora do que a melhor
análise jurídica apontar.
“Minha preocupação, desde o início, é
garantir um relatório que efetivamente tenha serventia, que não seja só mais
uma peça de factoide”, disse Vieira à coluna.
Para surtir efeitos concretos, o relatório
final terá diferentes encaminhamentos, a depender da violação do tipo jurídico
identificada pela CPI, e de sua atribuição à autoridade, pessoa física ou
jurídica, a serem responsabilizados pelo colegiado.
Dessa forma, na hipótese de imputação de
crime comum ao presidente Jair Bolsonaro, ou a alguns de seus ministros, o
relatório final será endereçado ao procurador-geral da República, Augusto Aras.
Se a CPI concluir pela prática de crime de
responsabilidade pelo presidente Bolsonaro, ou por alguns de seus ministros, o
documento será encaminhado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para
dar andamento ao processo.
No caso dos investigados sem foro especial,
o relatório será enviado Ministério Público Federal para as providências
cabíveis na esfera judicial.
Alessandro Vieira não descarta o envio de
cópia do relatório da CPI ao Tribunal Penal Internacional (TPI), com sede em
Haia, na Holanda, caso o colegiado identifique a prática de crimes contra a
humanidade da parte do presidente Bolsonaro.
Segundo Vieira, a CPI já tem elementos para
concluir que “a política equivocada do governo brasileiro foi responsável por
um número absurdo de mortes, e isso deve ser levado em consideração”.
O grupo de juristas que auxilia a CPI tem
expertise para remeter o documento à Corte internacional. Uma das integrantes é
Sylvia Steiner, que atuou como juíza do TPI de 2003 a 2016. Antes ela foi
membro do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região.
Em entrevistas recentes, entretanto,
Steiner alertou que são remotas as chances de que a Corte internacional analise
eventual denúncia contra Bolsonaro, porque tem dado prioridade para casos que
envolvam conflito armado.
O próprio Reale Júnior integrou a comissão
especial do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), coordenada
pelo ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, cujo
parecer, finalizado em abril, identificou “fundadas e sobradas razões para que
o presidente da República possa responder, no plano internacional, por crime
contra a humanidade”. Esse parecer também imputou crime de responsabilidade a
Bolsonaro.
Entretanto, na quinta-feira, dia 15, os
conselheiros da OAB adiaram a análise desse parecer, que em tese, embasaria um
pedido de impeachment contra Bolsonaro formulado pela entidade, presidida por
Felipe Santa Cruz, desafeto do presidente.
O colegiado está dividido, e alguns
conselheiros sugeriram que o tema seja retomado somente após a apresentação do
relatório final da CPI da Covid.
Oportuno lembrar que, em 1992, o pedido que
depôs Fernando Collor do cargo amparou-se no relatório final da CPI do PC
Farias. O documento foi aprovado pela comissão mista de inquérito, por 16 votos
a cinco, no dia 26 de agosto. Seis dias depois, o relatório embasou o pedido de
deposição de Collor formulado pelo então presidente da OAB, Marcelo Lavenère, e
pelo presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Barbosa Lima
Sobrinho.
Embora esse desdobramento implique a
conjugação de fatores políticos e jurídicos, Alessandro Vieira acredita que a
gravidade dos fatos apurados pela CPI da Covid possa desembocar no impeachment
de Bolsonaro. “Seria um processo autônomo em relação à CPI, mas que tenha
reflexo da CPI, sem dúvida”, avaliou.
“Bolsonaro fez escolhas equivocadas, todas
elas sem nenhum lastro técnico ou justificativa racional, algumas aparentemente
motivadas por uma alienação ou processo de ignorância profunda, mas outras
tantas, aparentemente num processo de criar dificuldades no combate à pandemia
para que algumas pessoas tivessem vantagem financeira.”
A comissão ainda precisa se aprofundar na
apuração sobre a vantagem financeira auferida por alguns, como, por exemplo,
com a venda de medicamentos do “kit covid”. Mas o senador acredita que essa
linha de investigação seja de “uma gravidade tamanha, que seguramente aponte
para uma possibilidade de impedimento”.
Alessandro Vieira prevê, pelo menos, mais
dois meses de trabalhos, embora a prorrogação seja de 90 dias. Ele vê essa
segunda etapa mais voltada à análise dos documentos, mas alerta para a
relevância de algumas reinquirições, como a do ex-ministro da Saúde Eduardo
Pazuello. “Hoje sabemos que ele mentiu em vários momentos, está bem longe do
gestor responsável que ele tentou afirmar ser”.
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