EDITORIAIS
Retrato da degradação
O Estado de S. Paulo
Eleito com a festiva expectativa de
inaugurar uma “nova política”, o atual Congresso parece empenhado em desmontar
o pouco que resta de contenção contra os maus hábitos da “velha política”.
A mais recente ofensiva se deu na
quinta-feira passada, e seguiu rigorosamente o roteiro da esperteza parlamentar
que faz a festa de partidos fisiológicos e de políticos oportunistas enquanto
dilapida o erário e ajuda a empobrecer o País.
À socapa, sem dar qualquer possibilidade de
debate, adicionou-se ao projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de
2022 um aumento obsceno no fundo de financiamento eleitoral. Segundo cálculos
de técnicos da Câmara, a mudança fará o fundo saltar para R$ 5,7 bilhões, um
aumento de 185% em relação aos R$ 2 bilhões destinados à campanha eleitoral de
2020.
O valor coloca o Brasil como um dos países
que mais gastam dinheiro público com partidos e candidatos no mundo – tudo isso
em meio à penúria generalizada causada pela pandemia de covid-19.
Diante da repercussão negativa, vários parlamentares, a começar pelos governistas, disseram que votaram a favor do projeto de LDO, mas não do aumento do fundo. O próprio presidente Jair Bolsonaro tratou de responsabilizar o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), que conduziu a votação na Câmara. Na versão do presidente, Marcelo Ramos, que é vice-presidente da Câmara, manobrou para aprovar o aumento do fundo eleitoral.
Ora, se estivessem realmente interessados
em impedir a aprovação, os agora indignados parlamentares governistas poderiam
ter se juntado ao esforço de um punhado de partidos que apresentaram destaque
contra a medida. Como o destaque foi facilmente derrubado, em votação
simbólica, sem qualquer mobilização por parte dos aliados do Palácio do Planalto,
presume-se que poucos parlamentares queriam de fato barrar o aumento.
Ademais, a aberração poderia ter sido
abortada no Senado, mas, assim como na Câmara, passou sem dificuldade, com
votos nominais de vários governistas.
O governo poderia, se quisesse, pelo menos
dificultar a tramitação do aumento escandaloso do fundo eleitoral, mas não o
fez: seus articuladores no Congresso deixaram correr a esbórnia, embora
tivessem pleno conhecimento do que estava sendo operado.
Nada do que se passou no Congresso nesse
inacreditável episódio teria acontecido se não fosse fruto de um grande acordo.
E o presidente Bolsonaro, a quem cabe agora a decisão de vetar ou não o aumento
do fundo eleitoral, pode até afetar indignação com o que chamou de “casca de
banana”, mas, quando poderia ter interferido na questão, orientando seus
líderes no Congresso, mais uma vez se omitiu – o que, em política, geralmente é
lido como aval.
Essa deliberada ausência do presidente da
República na articulação parlamentar não apenas confunde sua base, como dá ao
Congresso uma autonomia política impensável num regime presidencialista. O
reflexo mais óbvio disso é a facilidade com que deputados e senadores vêm
criando mecanismos para dispor do Orçamento como bem entendem, não raro longe
dos radares democráticos – tudo isso sob o olhar catatônico de um presidente
que só se interessa pelo que acontece no Congresso na medida em que isso afeta
as chances de terminar seu mandato.
A rigor, o festim com verba pública nas
campanhas eleitorais nem deveria ser permitido. Não há nenhum argumento
razoável para obrigar o contribuinte a aceitar que o dinheiro do seu imposto
seja usado para financiar partidos e candidatos com os quais não se identifica.
Democracia representativa dá trabalho:
presume que os partidos sejam capazes de convencer seus eleitores não apenas a
lhes dar votos, mas a lhes proporcionar capacidade de subsistência, por meio de
doações e de participação. Para isso, contudo, os partidos deveriam ser
ideologicamente discerníveis uns dos outros, de modo a despertar no eleitor o
genuíno sentimento de representação.
Sabemos que raros são os partidos capazes
disso – a maioria representa apenas seus donos e seus interesses privados. O
imoral aumento do fundo eleitoral é consequência natural dessa degradação da
democracia.
A exploração de uma tragédia
O Estado de S. Paulo
Quando depôs na CPI da Pandemia, em maio, o
intendente Eduardo Pazuello tentou justificar sua falta de empenho nas
negociações com a Pfizer para compra de vacinas contra a covid-19 argumentando
que, como ministro da Saúde, era o “dirigente máximo”, o “decisor” dos
contratos firmados pela pasta. Portanto, seria uma incumbência do “nível
administrativo” negociar com os representantes do laboratório. Arrogante,
Pazuello chegou a admoestar o relator da comissão, o senador Renan Calheiros
(MDB-AL), afirmando que alguém na sua posição “já deveria saber” que o ministro
não poderia se reunir com empresários. À desídia e à empáfia de Pazuello se
somou uma mentira. Não foi a primeira lorota do intendente e, seguramente, não
há de ser a última.
Dois meses antes do depoimento à CPI,
Pazuello se reuniu no Ministério da Saúde com representantes de uma obscura
empresa sediada em Santa Catarina, a World Brands Distribuidora, para negociar
a compra de 30 milhões de doses da Coronavac “direto com o governo chinês”. Ou
seja, fez exatamente o que disse aos senadores que não poderia fazer em razão
do cargo. De acordo com um vídeo revelado pelo jornal Folha de S.Paulo,
a reunião entre Pazuello e os representantes da World Brands parece ter sido
bastante promissora, haja vista que na ocasião foi assinado um “memorando de
entendimentos” para a compra da Coronavac e, com o “compromisso” de Pazuello, a
assinatura do contrato não tardaria.
Por mais esdrúxulo que possa parecer, a
mentira do intendente à CPI talvez seja o menor dos problemas daquele encontro
escabroso. Vejamos.
O que o então ministro da Saúde chamou de
“negociação direta com o governo chinês” para comprar a Coronavac na verdade
não passava de uma negociação com uma empresa atravessadora registrada em nome
de um empresário – Jaime José Tomaselli – que, conforme revelou o Estado, foi
condenado em 2014 pela Justiça Federal de Itajaí (SC) por fraudes em processos
de importação. Uma pesquisa simples evitaria que Pazuello, se estivesse
interessado, abrisse as portas do Ministério da Saúde para uma empresa de má
reputação.
Os 30 milhões de doses da Coronavac
negociadas por meio da World Brands custariam à União US$ 28 cada dose, quase o
triplo do valor cobrado pelo Instituto Butantan (US$ 10), única instituição
autorizada pelo laboratório Sinovac a produzir e comercializar a vacina no
País. Do ponto de vista criminal, os senadores da CPI da Pandemia precisam
investigar a fundo as razões para esta gritante diferença de preço. É lícito
inferir que interesses antirrepublicanos estejam por trás da transação. Se
quisesse, o governo federal teria todas as condições de negociar a compra dos
30 milhões de doses da Coronavac diretamente com o Butantan, em condições comerciais
muito mais favoráveis para a União, vale dizer, para os contribuintes. Some-se
a isto a certeza de que o Butantan, instituição idônea que é, entregaria o
produto contratado, uma salvaguarda sanitária importantíssima no momento mais
crítico da pandemia.
Do ponto de vista político, é evidente que
o presidente Jair Bolsonaro pôs os seus interesses eleiçoeiros muito acima da
saúde e da vida dos brasileiros. Ou seja, cometeu mais um crime de
responsabilidade. Convém lembrar que Pazuello apenas cumpria ordens de
Bolsonaro. Não foi sem a anuência do presidente, portanto, que o então ministro
se reuniu com os representantes da World Brands para comprar vacinas.
A exploração da tragédia é a principal
linha de investigação da CPI da Pandemia. Bolsonaro tentou desmoralizar a
Coronavac, sabidamente segura e eficaz contra a covid-19, apenas por se tratar
de um imunizante trazido ao País pelo governador de São Paulo, João Doria
(PSDB), que o presidente trata não como adversário político, mas como inimigo
figadal. Ao usar a aquisição da Coronavac como instrumento de sua rinha
política com Doria, Bolsonaro contribuiu decisivamente para aumentar o número
de casos e mortes por covid-19 no País.
Ao final da CPI, espera-se que todos os que
se aproveitaram do desastre, política ou financeiramente, sejam levados à
Justiça.
Inflação com desemprego
O Estado de S. Paulo
Além de infernizar as famílias, a inflação
disparada pode atrapalhar duplamente a retomada econômica – reduzindo o poder
de compra dos consumidores e forçando a elevação dos juros. Esses efeitos são
especialmente danosos num ambiente de alto desemprego e, além disso, de baixa
qualidade das ocupações disponíveis para dezenas de milhões de trabalhadores.
Os últimos dados oficiais mostram 14,8 milhões de desocupados no trimestre
móvel encerrado em abril. Dificilmente o quadro do emprego terá melhorado de
forma significativa nos meses seguintes, a julgar pelas informações setoriais
já publicadas. Mas a alta de preços continuou avançando, nesse período, e as
perspectivas têm piorado seguidamente.
Até as condições do tempo têm contribuído
para alimentar a inflação. Com chuva escassa em grande parte do País, as
tarifas de energia elétrica já foram reajustadas. No mercado internacional, as
cotações têm pressionado os custos dos combustíveis, com reflexos nos preços da
gasolina, do diesel e do gás. Em quatro semanas, as previsões do mercado para a
alta dos preços administrados em 2021 passaram de 9,16% para 9,95%. Nesse grupo
se incluem os preços de combustíveis, dos transportes públicos e da
eletricidade. Os brasileiros estão gastando mais para tomar banho quente, para
ir ao trabalho e para cozinhar alimentos – adquiridos com preços já muito
remarcados.
A inflação anual chegará a 6,31% em
dezembro, segundo a mediana das projeções da pesquisa Focus divulgada
ontem. Essa estimativa piorou pela 15.ª semana consecutiva e há mais de um mês
aponta resultados acima do limite de tolerância. Esse limite, de 5,25%, supera
por 1,5 ponto porcentual o centro da meta, de 3,75%. O ponto central ficará em
3,5% no próximo ano, mas a expectativa captada na pesquisa ficou em 3,75%. Esse
número é pouco inferior àquele registrado quatro semanas antes (3,78%), mas
ainda ultrapassa o alvo fixado para a evolução do Índice Nacional de Preços ao
Consumidor Amplo (IPCA).
Com a piora da inflação, o mercado prevê um
aperto maior da política monetária. Para enfrentar a alta de preços, até o fim
do ano o Banco Central (BC) deverá elevar os juros básicos a 6,75%. Há um mês a
mediana das projeções apontava 6,5%. Se os preços evoluírem de acordo com as
previsões, o BC terá de aplicar uma política anti-inflacionária mais severa, deixando
as condições de crédito menos favoráveis à expansão dos negócios. Além disso,
com juros mais altos a dívida pública ficará mais cara e a gestão das contas
oficiais se tornará mais complicada.
Para avaliar as condições das famílias,
convém considerar também a inflação acumulada no ano e em 12 meses. Em junho o
IPCA subiu 0,53%. No ano, 3,77%. Em 12 meses, 8,35%, taxa muito superior ao
limite de tolerância fixado para o ano. É importante levar em conta a inflação
acumulada porque qualquer novo aumento ocorre sobre um patamar já muito
elevado.
Esse patamar já é muito alto no caso dos
preços mais importantes para a manutenção da família. Nos 12 meses até junho o
custo de alimentos e bebidas subiu 12,59%, mas esse número, já muito alto, é
uma taxa média. As carnes vermelhas encareceram 38,17%. Aves e ovos, 16,41%.
Leite e derivados, 13,37%. Óleos e gorduras, 54,9%. Outros itens essenciais
também ficaram muito mais dispendiosos. Os preços de combustíveis domésticos
(incluído o gás) subiram 22,98%. A tarifa de energia elétrica residencial
aumentou 14,2% nesse período.
Em junho, o IPCA subiu 0,53%. Essa taxa,
inferior à de maio (0,83%), ainda é muito alta e, além disso, incidiu sobre um
patamar já muito elevado. No período de 16 de junho a 15 de julho, o Índice de
Preços ao Consumidor Semanal (IPC-S) da Fundação Getúlio Vargas aumentou 0,88%
em relação às quatro semanas anteriores. No período anterior havia subido
0,72%. Não seria este um momento de manter uma firme assistência aos mais
vulneráveis por meio do auxílio emergencial? O governo terá dinheiro para isso,
se gastar menos com interesses paroquiais de seus aliados e de seus membros.
Congresso tem de esquecer reformas política
e eleitoral
O Globo
Está em curso no Congresso um festival de
iniciativas de ordem eleitoral e política que precisam ser derrubadas para
preservar a saúde da democracia brasileira. A começar pelo escandaloso aumento
no fundo eleitoral, destinado a custear as campanhas no pleito de 2022. De R$
1,7 bilhão em 2018, o total saltou para R$ 5,7 bilhões na Lei de Diretrizes
Orçamentárias, um aumento injustificado.
Embora essa seja, pelo valor, a medida que
despertou maior indignação, ela não é o único, nem o maior, absurdo em
tramitação. Estão em gestação um projeto desastroso de reforma política, uma
reforma eleitoral descabida e até uma proposta de mudança no sistema político.
São iniciativas que, se prosperarem, piorarão a representatividade e a
transparência da nossa democracia.
O projeto de reforma política da deputada
Renata Abreu (Podemos-SP) prevê para a eleição do ano que vem a adoção de um
sistema de escolha de deputados considerado o pior pelos cientistas políticos:
o “distritão”, por meio do qual são eleitos os mais votados, desprezando votos
nas legendas ou nos demais candidatos. É um sistema que favorece a candidatura
de esportistas, líderes religiosos e celebridades, em detrimento dos partidos.
O projeto inclui incentivos a plebiscitos e alivia a cláusula de barreira que
tenta inibir a fragmentação partidária.
Trata-se de retrocesso inadmissível no
saneamento gradual da estrutura partidária brasileira posto em marcha pela
minirreforma política de 2017. As eleições de 2022 serão as primeiras de âmbito
nacional sob a vigência das novas regras sobre coalizões partidárias e cláusula
de barreira. Não faz o menor sentido querer mudá-las antes mesmo que sejam
testadas na prática.
Não bastasse isso, outro projeto, da
deputada Margarete Coelho (PP-PI), propõe mudar a prestação de contas dos
partidos, abrindo brechas a usos escusos do fundo partidário. A proposta acaba
com a divulgação de bens dos candidatos, torna mais lenientes a punição por
caixa dois e a regulação da propaganda. Nada disso fará bem à transparência das
eleições.
Por fim, o presidente da Câmara, Arthur
Lira (PP-AL), estuda a adoção, em 2026, do sistema político de países como
França ou Itália, o semipresidencialismo (com presidente e primeiro-ministro).
É uma ideia no mínimo fora de hora. O brasileiro escolheu o presidencialismo
como sistema de governo no plebiscito de 1993, e o Congresso não pode atropelar
a vontade do cidadão às vésperas de um ano eleitoral, sem promover um debate
maduro.
Por mais que nosso sistema crie arestas na
relação entre Executivo e Legislativo, ele também protege o país dos desvarios
de líderes populistas. O Congresso tem funcionado como freio essencial aos
arroubos de presidentes. Uma relação mais próxima poderia ter o benefício da
agilidade, mas cobraria um preço alto na qualidade das leis.
É justamente esse papel de freio que se
exige do Parlamento agora. Propor tantas mudanças neste momento é sinal de que
há nelas pouca substância e muito oportunismo, num jogo em que as mais
exuberantes poderão ser sacrificadas para que outras passem despercebidas. O
Brasil não precisa de outra reforma política, nem de mudança drástica na lei
eleitoral, muito menos de voto impresso ou outro sistema de governo. Precisa,
isso sim, de boas reformas administrativa e tributária, que não parecem ter,
aos olhos dos parlamentares, o mesmo senso de urgência.
Software espião israelense desperta
preocupação com segurança digital
O Globo
Uma ferramenta de espionagem digital
chamada Pegasus, desenvolvida pela empresa israelense NSO Group, foi usada para
grampear smartphones de ao menos 37 jornalistas, ativistas de direitos humanos
e executivos em vários países, de acordo com um consórcio internacional de 17
veículos de comunicação, entre os quais o britânico The Guardian, o francês Le
Monde e o americano The Washington Post. Os dados foram obtidos em primeira mão
pela ONG Forbidden Stories.
Não se trata de obra de adolescentes ou
criminosos, mas de governos. Reportagens publicadas no domingo afirmam que o
software espião, vendido a agências de inteligência de várias partes do mundo,
foi amplamente usado de forma indevida. Uma lista com “pessoas de interesse”
reunia mais de 50 mil números de telefone em 45 países, incluindo Índia e
México. A NSO afirma que seu software foi criado para coletar dados de
suspeitos de crimes e terrorismo e acusa a reportagem de falsas suposições. No entanto
uma análise forense realizada pela Anistia Internacional sustenta a acusação de
abuso para, pelo menos, 37 dos alvos dos grampos.
O Pegasus pode invadir celulares e
computadores com o clique numa mensagem, mas também a partir de ações mais
prosaicas, como abrir um vídeo enviado num grupo de WhatsApp. Uma vez dentro do
aparelho, o software permite que os invasores tenham acesso a todos os dados e
também ao microfone e à câmera. Fazem do smartphone ou do computador uma fonte
permanente de escuta.
Que ditaduras, como Arábia Saudita ou
Marrocos, não tenham limites para vigiar seus cidadãos não chega a ser uma
novidade. O chocante na revelação é ver democracias entre os suspeitos de
promover escutas ilegais. Na Índia, Rahul Gandhi, principal nome da oposição,
foi um dos possíveis alvos. No México, o software foi, pelas informações
publicadas, adquirido ainda no governo do presidente Enrique Peña Nieto. A
investigação levanta a suspeita de que tenha sido usado contra advogados e
defensores dos direitos humanos.
O consórcio de imprensa continuará
publicando reportagens, que precisarão passar pelo escrutínio de outros órgãos
independentes. O Brasil não aparece na lista de países que usam o software de
forma irregular. Não existe nem confirmação de que os órgãos de investigação e
espionagem brasileiros tenham o Pegasus. Mas é difícil que ninguém tenha tomado
conhecimento de algo do tipo, que circula há tempos no submundo da espionagem.
Que a experiência internacional sirva de
lição. As democracias têm o dever de proteger seus cidadãos espionando
potenciais terroristas e malfeitores, mas desde que obedeçam estritamente às
leis que regem essas atividades. Todo o resto é ação criminosa daqueles que
estão no poder, tornando vulneráveis cidadãos, órgãos da sociedade civil, a
imprensa e a própria democracia.
Pelado na piscina
Folha de S. Paulo
Balbúrdia administrativa é apenas o mínimo
que o vídeo com Pazuello evidencia
“Quando
fala em propina, é pelado dentro da piscina.” Foi com a particular
familiaridade que gosta de exibir com terminologias do submundo que o
presidente Jair Bolsonaro comentou o episódio obscuro do vídeo
envolvendo o ex-ministro Eduardo Pazuello (Saúde).
Revelada na sexta (16) pela Folha, a peça mostra o general
da ativa que comandou um desastre na gestão da pandemia de Covid-19 recebendo
afetuosamente vendedores de vacinas contra a doença.
Na lógica presidencial, o fato de o alegre
colóquio ter sido registrado inocenta a priori Pazuello. Segundo tal arrazoado,
o ministro, se quisesse participar de alguma negociata, deveria procurar algum
dos vários clubes à beira do lago Paranoá para agir sem registros.
Infelizmente, não é tão simples. Assim como
nas traficâncias envolvendo a compra do imunizante indiano Covaxin e na
rocambolesca história da oferta de 400 milhões de doses do fármaco da
AstraZeneca, salta aos olhos o que parece um misto de inépcia e esperteza (no
pior sentido da palavra) na gestão do vital ministério.
O vídeo, ressalte-se, não trata de propina
—mas sim de uma possível compra da demonizada Coronavac, mensurada em 30
milhões de unidades, por um preço equivalente ao triplo do contratado pelo
próprio Pazuello na versão formulada e envasada no Instituto Butantan, de São
Paulo.
Além da discrepância, num momento em que o
governo do rival João Doria (PSDB) ofertava mais vacinas de origem chinesa para
a pasta, há uma dúvida: os negociantes em questão não apresentavam requisitos
para tal. Vendiam vento.
Ainda que o laboratório chinês Sinovac, que
tem no Butantan seu representante exclusivo no Brasil, houvesse ofertando doses
por meio de atravessadores, seria de esperar algum protocolo na negociação.
Mas não. Na Saúde de Bolsonaro, quem
oferece “terrenos na Lua”, como o presidente disse ocorrer em profusão em
Brasília, é recebido por altas autoridades.
O episódio, que Pazuello tentou depois
minimizar ao dizer que não havia negociado nada, é também mais um arranhão na
imagem das Forças Armadas, enredadas como estão com os destinos do governo.
Não apenas a passagem do general pela pasta
se mostrou um fiasco gerencial como uma quantidade expressiva de fardados, da
ativa e da reserva, se viu na mira das investigações de desmandos da CPI da
Covid no Senado.
Por mais de um motivo, é evidente a
conveniência de aprovar a proposta de emenda constitucional que restringe o
acesso de militares da ativa a funções civis. Trata-se de aperfeiçoamento
institucional relevante para a preservação das Forças e de sua missão.
Estado policial
Folha de S. Paulo
Amazonas entrega postos-chave da gestão a
PMs e registra um acúmulo de chacinas
A onda conservadora que levou Jair
Bolsonaro ao Planalto em 2018 também elegeu governadores e parlamentares
defensores do endurecimento da ação policial e de interesses das corporações da
segurança pública. O Amazonas constitui hoje um exemplo de quão deletéria pode
ser essa combinação.
Neófito na política e à frente do estado
graças à popularidade como apresentador de um programa de TV policialesco,
Wilson Lima (PSC) entregou as pastas de Segurança Pública e de Administração
Penitenciária a coronéis da PM. Os resultados são calamitosos.
Em dois anos e meio, a Polícia Militar
amazonense já protagonizou três chacinas. A primeira delas, ocorrida em 2019 em
Manaus, deixou um saldo de 17 mortos —na operação mais letal de sua história.
Na segunda, em agosto de 2020, perto da
cidade de Nova Olinda do Norte, registraram-se cinco mortos e três
desaparecidos, em reação à morte de dois policiais. A truculência levou a
Justiça Federal a determinar que a União adotasse medidas para proteger
ribeirinhos e indígenas da ação dos agentes.
A mais recente matança aconteceu
na cidade fronteiriça de Tabatinga, em junho, também após o assassinato de
um policial. Familiares e testemunhas acusam a PM de ter matado seis jovens,
dos quais três foram encontrados no lixão da cidade com sinais de tortura.
Além dos casos de violência extrema, há envolvimento
em episódios rumorosos, como o roubo, em maio, de 500 quilos de maconha para
redistribuição.
No início do mês, o secretário-executivo de
Inteligência, o delegado da Polícia Civil Samir Freire, foi preso por rastrear
e se apropriar de ouro de garimpo usando a máquina pública. Segundo
investigações, ele e sua equipe monitoravam as vítimas com o Guardião,
equipamento sofisticado que grava conversas telefônicas.
Enquanto isso, a população amazonense não
deixa de padecer com a ousadia do crime organizado. Em junho, numa inédita
demonstração de força, o Comando Vermelho incendiou e depredou ônibus, prédios
públicos e viaturas em Manaus e em outras cidades.
Apesar do cenário desolador, o governador
Wilson Lima não dá sinais de que mudará de rumo. O Amazonas está refém, pois,
de uma nefasta união de ideologia e corporativismo que resulta em péssima
política pública. Que ao menos sirva de alerta às outras unidades da Federação
e à sociedade.
Cresce pressão externa sobre a política do
meio ambiente
Valor Econômico
Em vários países existem propostas para
taxar produtos mais poluidores importados, mas sem detalhes
Governadores da Amazônia Legal lançaram na
semana passada o Plano de Recuperação Verde (PRV) em uma tentativa de atrair
investimentos para projetos sustentáveis regionais, desvinculados das ações
federais, que carecem de credibilidade na gestão do presidente Jair Bolsonaro.
A iniciativa surge em um momento em que aumentam as pressões internacionais em
favor do meio ambiente, reforçadas por dados que mostram a expansão dos focos
de incêndio na Amazônia, que inclusive estão emitindo mais carbono do que a
floresta consegue neutralizar, e pelas cheias que já fizeram quase duas
centenas de mortos na Alemanha, um dos maiores defensores de políticas
ambientais sérias.
Lançado pelo Consórcio Interestadual para o
Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Legal, formado pelos Estados da região,
o Plano de Recuperação Verde tem como objetivo desenvolver uma economia “verde”
ou de baixo carbono, capaz de combater as desigualdades sociais e econômicas da
região amazônica, gerar emprego e renda para seus 30 milhões de habitantes e
abrir espaço para o crescimento econômico sustentável. O plano tem quatro eixos
- freio ao desmatamento ilegal, produção sustentável, inovação e capacitação e
infraestrutura verde - e ainda promete zerar o desmatamento ilegal até 2030. O
investimento inicial será de R$ 1,5 bilhão, com recursos públicos e privados.
O grupo também pretende desbloquear o Fundo
Amazônia ainda este ano, em negociação com o governo federal ou ação na
Justiça. Formado principalmente por recursos dos governos da Noruega e da
Alemanha, o fundo está com seus cerca de R$ 2 bilhões bloqueados há dois anos e
com repasses cortados depois de mudanças unilaterais feitas pelo governo de
Bolsonaro. Mas a boa vontade do Consórcio pode ser insuficiente para convencer
o mundo de que houve mudanças na gestão ambiental brasileira. Um dos motivos é
que o próprio consórcio carece de consenso, o que limita as posições. Há
divisões entre os nove Estados da região. São alinhados ou próximos de
Bolsonaro seis deles - Rondônia, Roraima, Amazonas, Tocantins, Acre e Mato
Grosso. Mais independentes são Amapá, Maranhão e Pará.
Além disso, o comportamento do governo
federal não sustenta essa suposição. No campo legal ou infralegal, a “boiada”
segue passando, mesmo após a saída do ministro Ricardo Salles, com medidas do
governo que visam enfraquecer os controles ambientais, e pautas no Congresso
contra os direitos indígenas e unidades de conservação, como a extinção do
ICMbio e a transferência da responsabilidade pelo monitoramento e informação da
existência de incêndios florestais do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial
(Inpe), do Ministério de Ciência e Tecnologia, para o Instituto Nacional de
Meteorologia (Inmet), vinculado ao Ministério da Agricultura.
Nem a saída de Salles do Ministério do Meio
Ambiente é considerada um bom sinal. O novo ministro, Joaquim Álvaro Pereira
Leite, defende posições semelhantes. A realidade dos números é incontestável:
houve aumento de 17% do desmatamento na Amazônia no primeiro semestre na
comparação com o mesmo período de 2020. Junho registou 2.308 focos de incêndio
na região, o maior número em 14 anos - um inequívoco mau sinal.
Não vai ser fácil para o novo ministro
causar uma boa impressão na CoP 26, em novembro, em Glasgow. Na semana passada,
o prestigioso jornal britânico Financial Times publicou editorial listando os
fracassos da política ambiental brasileira, avaliando que já passou da hora de
negociar, e instando os investidores internacionais a “enviarem um sinal de US$
7 trilhões para Brasília de que, a menos que o desmatamento diminua, eles se
desfarão dos seus ativos”.
Uma ameaça desse tipo pode não se
concretizar uma vez que os investidores também não formam um bloco único. Mas
há pressão também do lado comercial. Ao mesmo tempo em que anunciou na semana
passada seu plano para descarbonizar a economia, desde a geração de
eletricidade até a produção de automóveis, aquecimento habitacional,
transportes aéreo e marítimo, e agricultura, a União Europeia também anunciou a
criação de uma taxa de carbono a ser aplicada a produtos poluidores ou
fabricados à custa de danos ao ambiente, importados pela região.
Há uma proposta no Senado americano também
para taxar produtos mais poluidores importados, mas sem detalhes. Canadá e
Japão planejam um tipo similar de iniciativa. Faltam ainda detalhes sobre como
calcular e aplicar essa taxa de carbono. Mas o cerco está se estreitando.
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