quinta-feira, 15 de julho de 2021

Cristian Klein - Ameaças à democracia e suas vacinas

Valor Econômico

Militares são fator de desestabilização da democracia

Em cada país, as ameaças e ataques à democracia têm sua conformação própria. Atualmente, nos Estados Unidos, é pela aprovação de leis estaduais que dificultam o acesso ao voto, num movimento liderado pelo crescente reacionarismo do Partido Republicano. O trumpismo deixou sua herança e está à espreita de um retorno, depois da tentativa frustrada de invasão do Capitólio e de um golpe inédito na história norte-americana. No Brasil, useiro e vezeiro nas viradas de mesa políticas, o destino de república de bananas - que parecia ter ficado para trás desde a redemocratização - foi retomado e reforçado pelo avanço do bolsonarismo sobre as instituições.

A Procuradoria-Geral da República, a quem caberia defender os interesses da sociedade, tornou-se o puxadinho do Planalto, inerte aos desmandos durante a pandemia e à coletânea de abusos contra a vida, a liberdade, a justiça e o sistema democrático. Somente agora, quase dois anos depois da indicação de Augusto Aras, há uma reação dos pares à conduta do PGR, mais afeita à de integrantes de tropas de choque governistas. Tal qual uma Carla Zambelli (PSL-SP), a deputada que retira a máscara para imitar e adular o presidente.

As Forças Armadas também se esforçam em ser pastiche das hostes bolsonaristas. Mas deixam dúvidas até entre especialistas sobre a caserna: seriam alvo de uma tentativa de cooptação por Bolsonaro - à la Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro - ou foram elas próprias artífices da candidatura de 2018 e estão por trás do projeto de criação de um partido ou governo militar, com pretensões de comandar a política nacional pela tutela ou pelo comando direto do Estado?

As benesses salariais, privilégios na reforma previdenciária e os mais de 6 mil cargos hoje ocupados por militares na administração federal dão o tom do corporativismo travestido de patriotismo e de “interesse da nação”. Dados divulgados pela Controladoria-Geral da União (CGU), com um ano e meio de atraso, após determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), expuseram no início do mês o pagamento de pensões a filhas de militares que chegaram a R$ 117 mil líquidos, quase três vezes o teto constitucional.

É uma medida do que está em jogo, para além das alegadas preocupações com o futuro da nação. Trata-se de poder e posição social. Sem inimigos ou ameaça externa clara, num continente sem guerras, as Forças Armadas brasileiras nunca encontraram um papel bem definido que justificasse sua missão permanente. Procuram na política e na intervenção interna a razão de ser. Mesmo que para isso fiquem embebidas de um caldo de conservadorismo anacrônico, que insiste em ressuscitar fantasmas como o “comunismo”, cozinhado por figuras como o escritor Olavo de Carvalho.

Ironicamente, o guru do bolsonarismo, pelo alto grau de radicalização e pela disputa de espaço e influência no governo, está entre os maiores detratores da cúpula militar. O empresário e youtuber Felipe Neto não inovou ao escrachar o comandante da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Junior, e chamá-lo de “babaca” em suas redes sociais, na sexta-feira. Ninguém esculhambou mais generais, almirantes e brigadeiros, quando se exigia um novo AI-5, do que Olavo.

O autodenominado filósofo mora na Virgínia (EUA), mas voltou correndo ao Brasil, nos últimos dias, para um tratamento bancado pelo SUS, com acusações de ter furado a fila do procurado Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), onde está internado. Nessa hora, nada como o Estado longe do mínimo para financiar um Sistema Único de Saúde e um Sistema Único de Pensões para as herdeiras.

Ao insistirem no erro histórico de participar da vida política do país, as Forças Armadas se desmoralizam e se tornam um fator de desestabilização da democracia brasileira. Não são fiadoras ou garantidoras dela, ou poder moderador - ao contrário. O lugar do militar é no quartel. Passo importante para barrar os riscos de politização dos fardados foi dado ontem, com a apresentação da proposta de emenda à Constituição que determina o afastamento dos militares quando assumirem funções civis. Protocolada pela deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC), recebeu apoio de cinco ex-ministros da Defesa dos governos Lula (Nelson Jobim) e Dilma (Celso Amorim, Jaques Wagner e Aldo Rebelo) e de Michel Temer (Raul Jungmann).

A proposta vem sendo apelidada de “PEC Pazuello”, em referência ao general da ativa e ex-ministro da Saúde, que chegou a subir em trio elétrico de manifestação política com Bolsonaro, no Rio, sem ser punido pela corporação. A PEC é uma resposta parlamentar necessária diante do aparelhamento do governo federal e do uso das Forças Armadas como instituição de governo e não de Estado, num processo intensificado pelo atual ministro da Defesa, Walter Braga Netto, a quem é atribuída a ideia da redação da nota, em tom intimidatório, assinada na semana passada pelos três comandantes de força, contra a CPI da Pandemia, o Senado e, no limite, a todo o Congresso.

Não é, contudo, a CPI, cuja investigação compromete cada vez mais o presidente da República e seus assessores militares, o ponto de ataque do bolsonarismo. Ali, no Parlamento, eles jogam na defesa. Braga Netto, por exemplo, já foi convidado a se explicar na Câmara. No Supremo, o governo também está acuado, com a decisão do ministro Alexandre de Moraes de compartilhar provas do inquérito das “fake news” e dos atos antidemocráticos com ações do TSE que podem levar à cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.

A pressão se avoluma a ponto de parecer abalar a própria saúde do presidente, internado ontem depois de uma crise de soluços que dura mais de dez dias. A fragilidade e o discurso ameno adotado após a reunião de segunda-feira em que teria levado uma enquadrada do presidente do STF, Luiz Fux, não combinam, porém, com o estilo Bolsonaro.

É no ataque ao sistema de votação e na não aceitação do resultado em 2022, caso perca a reeleição, que o presidente aposta suas fichas para mandar a democracia às favas e à UTI. Doente ela já está.

Nenhum comentário: