Valor Econômico
Militares são fator de desestabilização da
democracia
Em cada país, as ameaças e ataques à
democracia têm sua conformação própria. Atualmente, nos Estados Unidos, é pela
aprovação de leis estaduais que dificultam o acesso ao voto, num movimento
liderado pelo crescente reacionarismo do Partido Republicano. O trumpismo
deixou sua herança e está à espreita de um retorno, depois da tentativa
frustrada de invasão do Capitólio e de um golpe inédito na história
norte-americana. No Brasil, useiro e vezeiro nas viradas de mesa políticas, o
destino de república de bananas - que parecia ter ficado para trás desde a
redemocratização - foi retomado e reforçado pelo avanço do bolsonarismo sobre
as instituições.
A Procuradoria-Geral da República, a quem
caberia defender os interesses da sociedade, tornou-se o puxadinho do Planalto,
inerte aos desmandos durante a pandemia e à coletânea de abusos contra a vida,
a liberdade, a justiça e o sistema democrático. Somente agora, quase dois anos
depois da indicação de Augusto Aras, há uma reação dos pares à conduta do PGR,
mais afeita à de integrantes de tropas de choque governistas. Tal qual uma
Carla Zambelli (PSL-SP), a deputada que retira a máscara para imitar e adular o
presidente.
As Forças Armadas também se esforçam em ser pastiche das hostes bolsonaristas. Mas deixam dúvidas até entre especialistas sobre a caserna: seriam alvo de uma tentativa de cooptação por Bolsonaro - à la Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro - ou foram elas próprias artífices da candidatura de 2018 e estão por trás do projeto de criação de um partido ou governo militar, com pretensões de comandar a política nacional pela tutela ou pelo comando direto do Estado?
As benesses salariais, privilégios na
reforma previdenciária e os mais de 6 mil cargos hoje ocupados por militares na
administração federal dão o tom do corporativismo travestido de patriotismo e
de “interesse da nação”. Dados divulgados pela Controladoria-Geral da União
(CGU), com um ano e meio de atraso, após determinação do Tribunal de Contas da
União (TCU), expuseram no início do mês o pagamento de pensões a filhas de
militares que chegaram a R$ 117 mil líquidos, quase três vezes o teto
constitucional.
É uma medida do que está em jogo, para além
das alegadas preocupações com o futuro da nação. Trata-se de poder e posição
social. Sem inimigos ou ameaça externa clara, num continente sem guerras, as
Forças Armadas brasileiras nunca encontraram um papel bem definido que
justificasse sua missão permanente. Procuram na política e na intervenção
interna a razão de ser. Mesmo que para isso fiquem embebidas de um caldo de
conservadorismo anacrônico, que insiste em ressuscitar fantasmas como o
“comunismo”, cozinhado por figuras como o escritor Olavo de Carvalho.
Ironicamente, o guru do bolsonarismo, pelo
alto grau de radicalização e pela disputa de espaço e influência no governo,
está entre os maiores detratores da cúpula militar. O empresário e youtuber
Felipe Neto não inovou ao escrachar o comandante da Aeronáutica, Carlos de
Almeida Baptista Junior, e chamá-lo de “babaca” em suas redes sociais, na
sexta-feira. Ninguém esculhambou mais generais, almirantes e brigadeiros,
quando se exigia um novo AI-5, do que Olavo.
O autodenominado filósofo mora na Virgínia
(EUA), mas voltou correndo ao Brasil, nos últimos dias, para um tratamento
bancado pelo SUS, com acusações de ter furado a fila do procurado Hospital das
Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), onde está internado. Nessa hora,
nada como o Estado longe do mínimo para financiar um Sistema Único de Saúde e
um Sistema Único de Pensões para as herdeiras.
Ao insistirem no erro histórico de
participar da vida política do país, as Forças Armadas se desmoralizam e se
tornam um fator de desestabilização da democracia brasileira. Não são fiadoras
ou garantidoras dela, ou poder moderador - ao contrário. O lugar do militar é
no quartel. Passo importante para barrar os riscos de politização dos fardados
foi dado ontem, com a apresentação da proposta de emenda à Constituição que
determina o afastamento dos militares quando assumirem funções civis.
Protocolada pela deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC), recebeu apoio de cinco
ex-ministros da Defesa dos governos Lula (Nelson Jobim) e Dilma (Celso Amorim,
Jaques Wagner e Aldo Rebelo) e de Michel Temer (Raul Jungmann).
A proposta vem sendo apelidada de “PEC
Pazuello”, em referência ao general da ativa e ex-ministro da Saúde, que chegou
a subir em trio elétrico de manifestação política com Bolsonaro, no Rio, sem
ser punido pela corporação. A PEC é uma resposta parlamentar necessária diante
do aparelhamento do governo federal e do uso das Forças Armadas como
instituição de governo e não de Estado, num processo intensificado pelo atual
ministro da Defesa, Walter Braga Netto, a quem é atribuída a ideia da redação
da nota, em tom intimidatório, assinada na semana passada pelos três
comandantes de força, contra a CPI da Pandemia, o Senado e, no limite, a todo o
Congresso.
Não é, contudo, a CPI, cuja investigação
compromete cada vez mais o presidente da República e seus assessores militares,
o ponto de ataque do bolsonarismo. Ali, no Parlamento, eles jogam na defesa.
Braga Netto, por exemplo, já foi convidado a se explicar na Câmara. No Supremo,
o governo também está acuado, com a decisão do ministro Alexandre de Moraes de
compartilhar provas do inquérito das “fake news” e dos atos antidemocráticos
com ações do TSE que podem levar à cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.
A pressão se avoluma a ponto de parecer
abalar a própria saúde do presidente, internado ontem depois de uma crise de
soluços que dura mais de dez dias. A fragilidade e o discurso ameno adotado
após a reunião de segunda-feira em que teria levado uma enquadrada do
presidente do STF, Luiz Fux, não combinam, porém, com o estilo Bolsonaro.
É no ataque ao sistema de votação e na não aceitação do resultado em 2022, caso perca a reeleição, que o presidente aposta suas fichas para mandar a democracia às favas e à UTI. Doente ela já está.
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