Folha de S. Paulo
Governo não tomou providências para
impedimento, vice viaja, Lira é réu
Até o fim da noite desta quarta (14)
sabia-se pouco da gravidade
do estado de saúde de Jair
Bolsonaro (sem partido) e menos ainda da sua capacidade física de se
manter no exercício da função de presidente da República, embora tenha passado
boa parte do dia sedado.
Em um país normal e até mesmo sob esse
governo, tais acidentes da vida e outras situações de ausência temporária do
presidente são facilmente resolvidos com a posse
do vice, que não tem outro papel constitucional a não ser este: ser
substituto. Em um país cada vez menos normal, essa que talvez seja apenas uma
crise temporária de saúde pode dar em confusão. Não deve ser tumulto
significativo, mas é exemplar.
O vice está viajando. No seu lugar, então, assumiria o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), que é réu, condição que o impediria de assumir a Presidência da República, segundo entendimento controverso do Supremo —há mesmo quem diga que a situação de réu de Lira está sub judice, para dizer a coisa de modo cínico.
É fácil perceber que essa situação toda não
é normal, ainda que seja muito improvável que redunde em crise. É um sintoma de
degradação, com manifestações ainda mais baralhadas.
O vice-presidente,
Hamilton Mourão, viajou na tarde desta quarta-feira para Angola, onde
chegaria no início da madrugada desta quinta-feira (15), caso seu voo não venha
a dar meia-volta sobre o Atlântico, uma hipótese levantada por um ministro
palaciano.
“Não vai ser nada”, “se Deus quiser”, “o
homem é uma fortaleza”, “tudo não passa de precaução maior com o mandatário, é
natural”, dizia o ministro. Mas, se for preciso, “o Mourão vai num pé e volta
no outro, é só chamar”. Segundo esse ministro, Bolsonaro deve
ficar internado até o final de semana, caso não seja operado —a primeira opção
dos médicos é tratá-lo sem cirurgia.
Mourão já
assumiu o posto quando Bolsonaro precisou de tempo para se recuperar de
operações, é verdade. Mas nesta quarta não foram feitos arranjos para uma
possível emergência; já era sabido que Bolsonaro seria levado para São Paulo,
que ficaria no hospital pelo menos até o fim de semana.
Houve confiança excessiva na recuperação
de Bolsonaro,
alguma desconfiança nova e amalucada sobre Mourão ou foi mera bagunça e
imprevidência?
A família
Bolsonaro, no entanto, teve tempo de politizar ou, mais que isso,
partidarizar a doença do presidente.
Exposto semidesnudo sob apetrechos
médicos, Bolsonaro ou
seu porta-voz midiático-social ainda era capaz de atribuir a doença ao PT.
Nessa lição de anatomia ideológica, o martírio do acossado pelo “sistema” que
“não deixa o homem trabalhar” se transformava no padecimento do homem comum
seminu e largado, uma versão grotesca de são Sebastião flechado pelo cateter.
Não se sabe se a propaganda de mártir vai
colar desta vez além das falanges fanáticas —nas redes sociais, havia muita
chalaça sobre a doença. Mas, na crise de saúde e diante da necessidade de
providências racionais e até comezinhas para substituir o presidente, entre
outras, foi a isso que Bolsonaro e
família se dedicaram.
O artigo 79 da Constituição diz:
“Substituirá o Presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe-á, no de vaga,
o Vice-Presidente”. O que é “impedimento”? É uma impossibilidade transitória,
interpreta-se. Quais? Não há definição legal nem precisão incontroversa do
termo na papelada jurídica, dizem entendidos.
Uma viagem ao exterior ou uma doença temporariamente
incapacitante parecem casos evidentes para o bom senso e para ambientes de
mínima regularidade institucional. É evidente que não parece ser o nosso caso.
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