Valor Econômico
A subsequente crise econômica profunda
contribuiu imensamente para eleger Bolsonaro
Neste momento em que as forças democráticas
precisam impedir a reeleição de Bolsonaro, Lula vem tentando construir
alianças. Abaixo propomos um embrião de texto a ser usado em sua empreitada.
Brasileiros e brasileiras, venho por esta
carta registrar tardiamente o mea-culpa que lhes devo há muitos anos. Começo
pedindo perdão ao ex presidente FHC. O Plano Real, contra o qual o meu partido
lutou acirradamente, foi um divisor de águas na história do Brasil. O fim da
inflação permitiu a reorganização da economia, bem como iniciou a reversão da
desigualdade de renda. FHC implantou reformas econômicas estruturais que muito
beneficiaram governos futuros como o meu. E poderia ter feito muito mais, se
não tivesse sofrido a aguerrida oposição do meu partido. O PT opôs-se às
privatizações por puro oportunismo, pois os funcionários de empresas estatais
constituíam parcela importante de nossa base eleitoral.
Hoje reconheço que o Estado não deve ter empresas. Numa democracia presidencialista multipartidária como a brasileira, o presidente tem muita dificuldade em formar uma maioria parlamentar estável capaz de aprovar sua agenda no Congresso. Inicialmente, contornei essa dificuldade implantando a negociação direta de votos, mas o esquema veio à tona sob a alcunha de Mensalão. Depois distribuí cargos federais entre os partidos aliados. O resultado foi o escândalo do Petrolão. Enquanto houver empresas estatais será impossível impedir que elas sejam saqueadas pela volúpia dos políticos.
Nós nos opusemos à reforma da previdência
de FHC também por puro oportunismo. Num país em que as classes média e alta se
aposentavam precocemente por Tempo de Contribuição, enquanto os pobres se
aposentavam por idade aos 65 anos, a reforma claramente reduzia desigualdades.
Mas meu partido manteve o discurso da retirada de direitos sociais para
subtrair votos de nossos adversários. E para não desagradar nossa base de
apoio, como servidores públicos e a elite sindical, beneficiada com condições
de aposentadoria muito superiores à da massa trabalhadora.
Em 1999, logo após o Brasil ter sido
forçado pelos mercados a deixar o real flutuar, houve uma maxi desvalorização
de 50%. Meu partido, por intermédio de nossos satélites - CUT e MST -, apoiou a
campanha golpista “Fora FHC” destinada a destituir um presidente reeleito em
primeiro turno havia apenas quatro meses. Também lutou contra a Lei de
Responsabilidade Fiscal, uma reforma fundamental que disciplinou as finanças de
estados e municípios.
Em 2002, quando minha candidatura decolou
nas pesquisas, o dólar disparou de R$ 2 para R$ 4, provocando uma abrupta
elevação da inflação. Como estratégia eleitoral, atribuí a culpa daquela alta à
política econômica de FHC. Na realidade, a culpa era somente minha e do meu
partido, pois durante décadas nós havíamos defendido o repúdio da dívida
pública que cinicamente dizíamos pertencer aos banqueiros. Quando os
investidores perceberam que eu seria eleito presidente, eles venderam os
títulos da dívida e compraram dólares, provocando a maxi desvalorização.
Em 2003, para reduzir a inflação era
necessário reverter a desvalorização cambial, o que exigia sinalizar aos
investidores que o PT adotaria um política econômica responsável. Meu governo
aumentou o superávit primário e manteve a taxa de juros elevada, o que gerou
temporariamente uma inevitável recessão. Nós adotamos - aliás, intensificamos -
a mesma política econômica de FHC que tanto havíamos criticado quando éramos
oposição. No entanto, no intuito de desviar de nós o desgaste daquelas medidas,
cunhei a matreira narrativa da “herança maldita” deixada por FHC. Na realidade,
tratava-se de uma herança bendita, pois herdamos um superávit primário de 3% do
PIB, além das excelentes reformas tão combatidas pelo meu partido.
Reconheço também que, logo no início de meu
governo, o PSDB cooperou muito conosco, apoiando as propostas econômicas
enviadas pelo meu ministro Pallocci. Muitas delas eram meras atualizações de
propostas que FHC não havia conseguido implantar, devido à oposição do meu
partido. Quando estourou o escândalo do Mensalão, muitos queriam o meu
impeachment, mas o então ex presidente FHC desarmou aquele movimento. Hoje
reconheço mais essa generosidade dele.
Após minha reeleição, graças ao boom de
commodities e às reformas econômicas minhas e de FHC, o Brasil crescia
aceleradamente. A economia ia tão bem que havia dinheiro para dar a todos os
grupos: aos pobres com o Bolsa Família, aos empresários via subsídios do BNDES,
aos funcionários públicos com aumentos generosos de salários e aos artistas com
a Lei Rouanet. Foi então que adotei o discurso do “nunca antes na história
deste país”. Na realidade, o que havia de realmente novo era a magnitude do
boom de commodities.
Em 2009, diante da descoberta do pré-sal,
modifiquei o marco regulatório do petróleo, ampliando a participação da
Petrobras na exploração, bem como decidi recriar a indústria naval, num
programa fortemente protecionista e subsidiado. Durante os cinco anos
seguintes, período em que o preço do petróleo estava altíssimo, a ANP não
promoveu nenhum leilão. Aquele projeto nacionalista revelou-se um desastre para
o país, com prejuízo de bilhões de dólares. A recriação da indústria naval,
como sabemos, não funcionou e esta desapareceu mais uma vez quando os subsídios
foram interrompidos.
Finalmente, devo reconhecer meu erro ao
escolher Dilma minha sucessora. Uma neófita em política, sua gestão econômica
altamente intervencionista desorganizou a economia, trazendo alta da inflação e
atrofia na geração de empregos. Em 2014, mesmo com a economia já estagnada e a
inflação artificialmente controlada pela contenção dos preços de combustíveis,
trabalhei para elegê-la novamente. A subsequente crise econômica profunda
contribuiu imensamente para eleger Bolsonaro.
Termino esta carta explicando que, por
orientação de meus advogados, não abordei nenhum dos temas que levaram à minha
condenação pelo juiz Sergio Moro e na segunda instância, pois qualquer
informação aqui registrada poderia comprometer a estratégia de defesa a ser
adotada no novo processo que correrá na vara de Brasília.
*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da
EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento
Renato Fragelli Cardoso é professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças
(EPGE-FGV)
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