O Estado de S. Paulo
A Constituição aborda crimes comuns de
presidentes, além dos de responsabilidade
O genocídio usualmente envolve ações
voltadas para grupos étnicos, como as de Hitler contra os judeus. E não estou
condenando Jair Bolsonaro pelos crimes de que tratarei mais à frente, pois isso
não me compete. Culpado seria se julgado e condenado.
Dos muitos pedidos de seu impeachment, percebi que focam mais em crimes de responsabilidade. São definidos no artigo 85 da Constituição: atos do presidente da República que atentem contra a própria Constituição e, especialmente, contra a existência da União, o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos Poderes constitucionais das unidades da Federação e a probidade na administração, entre outros casos. E num parágrafo único: “Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento”.
O artigo 86 prossegue: “Admitida a acusação
contra o Presidente ... por dois terços da Câmara ... será ele submetido a
julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou
perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade”.
Note-se que esse artigo também trata de
infrações penais comuns, dando-lhes status mais
grave, com julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e não pelo Senado,
como nos crimes de responsabilidade. Ademais, estes estão sujeitos apenas a
sanções de natureza política, enquanto nos crimes comuns cabe também a prisão.
Sobre os crimes de responsabilidade há
também a Lei n.º 1.079, de 10/4/1950. Parece-me ser a que cumpre o papel
referido acima no parágrafo único do artigo 85 da Constituição. O artigo 2.º
dessa lei diz que “os crimes de responsabilidade são passíveis da pena de perda
do cargo, com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função
pública ...”.
Volto agora à possibilidade referida no
título, a de homicídio culposo, que é um tipo de crime comum, sujeito ao Código
Penal. Este define o crime culposo no seu artigo 18 (II): “... quando o agente
deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”. No artigo
121, parágrafo 3.º, a pena é detenção de um a três anos.
Nos debates sobre a gestão Bolsonaro na
crise da covid-19, em especial na comissão parlamentar de inquérito (CPI) ora
em andamento no Senado, transparece que teria atuado com imprudência e
negligência que atrasaram o início da vacinação, ao protelar a aquisição das
vacinas oferecidas pela Pfizer e, em menor grau, das ofertadas pelo Instituto
Butantan. Ora, tal atraso impediu que fosse reduzido o número de mortes causado
pela pandemia, ou seja, causou a morte de milhares de pessoas, o que
caracterizaria crime doloso.
Há essa correlação negativa entre vacinação
e número de mortes. Ou seja, se a vacinação se amplia, como no momento, o
número de mortes cai, o contrário se verificando se a vacinação é reduzida.
Isso pode ser comprovado cientificamente. Conforme o site da Folha no dia 24/6, o
epidemiologista Pedro Hallal, pesquisador da Universidade Federal de Pelotas,
ao depor na citada CPI, declarou: “Apenas levando em conta a vacinação, até 145
mil mortes poderiam ter sido evitadas com uma rápida e eficiente política de
vacinação. São 95,5 mil mortes especificamente relacionadas à demora na
assinatura da (compra da) Pfizer e da Coronavac”.
O presidente da Câmara, deputado Arthur
Lira, argumenta que “falta materialidade” aos pedidos de impeachment que lhe
foram apresentados e que engavetou. Mas os dados acima constituem
materialidade. E outros estudos desse tipo poderiam ser encomendados pela CPI.
No caso do negacionismo quanto ao uso de máscaras e da defesa do “kit covid”,
de medicamentos recomendados pelo presidente, essa materialidade seria
impossível de comprovar, até porque a relação entre isso e as mortes não é
quantificável como o efeito do atraso na vacinação. Também se poderia
argumentar que quem tomou o kit ou deixou de usar máscaras o fez por vontade
própria. Já a falta de tubos de oxigênio em Manaus poderia materializar-se como
causa se identificados os pacientes que faleceram por essa razão.
Parece também que a percepção de crime
comum e culposo começa a se difundir. Na manifestação de rua do último dia 3,
este jornal mostrou uma senhora que ostentava um grande cartaz dizendo:
“Bolsonaro MATOU meu marido, 11/5/21. Ele não precisaria lutar para respirar se
o Bolsonaro tivesse comprado vacinas”. E na Folha de 8/7 a articulista Mirian Goldenberg
narrou o drama da advogada Maria Recchia, cujo filho foi contaminado pela
covid, mas se recuperou após tratamento no hospital Albert Einstein. Ela disse
que processará Bolsonaro por dano moral e material, e descobriu que já existe
um grupo de vítimas da covid, e de parentes que perderam alguém, exigindo a
responsabilização do presidente.
Ele que se cuide, pois essa linha de ação, principalmente se encampada pela CPI da Covid, pode causar-lhe problemas que sobreviveriam ao fim do seu mandato, eventualmente encurtando-o.
*Economista (UFMG, USP E HARVARD), professor sênior da USP. É Consultor Econômico e de Ensino Superior
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