O Estado de S. Paulo / O Globo
As aranhas urdidoras de fraudes eleitorais
do conto de Machado de Assis, A Sereníssima República, publicado em
1882, uma época marcada pela transição do Império à República e da escravidão
ao trabalho livre, são uma genial ficção etnológica e uma extraordinária
reflexão sobre a adoção de novos regimes políticos. Um assunto no qual o Brasil
é um caso exemplar e Machado de Assis, um privilegiado observador, pois, devido
à plenitude de uma aristocracia e de um patriarcado hegemônico, com o reforço
da fuga da corte portuguesa, proclamamos uma atiradíssima República sem
republicanos e uma democracia sem igualdade. Hoje, vítimas das teias que
tecemos, lidamos com o que parece ser uma maluquice eleitoral, tal como
aconteceu com as aranhas.
A fábula relata uma excepcionalidade de um processo de mudança cultural. As aranhas têm uma língua e, tanto quanto o Brasil, aceitam o republicanismo para descobrir que as demandas da República têm, no seu sistema eleitoral, uma degradável impessoalidade. Uma imparcialidade que nos torna anônimos e iguais perante a lei. Aranhas e nós, porém, temos reservas quanto a esse princípio contrário a práticas sociais hierarquicamente orientadas, mas enterradas no nosso inconsciente, exceto quando colocamos alguém no seu devido lugar com o “você sabe com quem está falando?”.
A igualdade como valor destoa da
reciprocidade revelada por Marcel Mauss, a qual obriga a fazer e devolver o
favor que, ao lado do jeitinho (caseiro ou legalmente supremo), coloca as
ideias nos seus lugares. Esses são os costumes não convidados que trazem de
volta a “velha política”. O sistema que Bolsonaro foi eleito para liquidar. E
que hoje o leva a pensar no golpe que destampa a teia de uma aristocracia
estatizada.
A comunidade das aranhas também sofre de um
claro antietnocentrismo. Inventada pelos seus onipotentes intelectuais, a
pátria das aranhas não percebe as gradações, privilégios e castas de sua ordem
social. A incongruência entre o regime político e os costumes promove um
nelson-rodriguiano complexo de vira-lata – esse sintoma de uma inferioridade
estrutural diante de estrangeiros “adiantados” e “civilizados”.
Por isso, as aranhas mais sensíveis pedem
ao Cônego Vargas – aquele humano a elas simpático que, como um etnólogo,
aprendeu sua língua e admirou suas teias – um regime político. Visto como um
demiurgo, algo comum nos encontros entre povos com grandes diferenças de poder,
esses contatos que conduzem à escravidão e ao colonialismo, o honesto Cônego
não hesitou em sugerir o sistema da Sereníssima República de Veneza, o menos
sujeito à imobilidade das heranças e casas aristocráticas, o que contém um
mecanismo de mudança e aprimoramento.
Adotando o regime republicano, logo as
melhores moças da coletividade teceram os sacos de onde sairia o nome de um dos
eventuais candidatos. Elas foram chamadas de “mães da República”, uma
informação reveladora de que a “política”, como a religião, o ensino, o jogo, o
esporte ou o trânsito, não entra em espaços vazios porque não há nenhuma
sociedade com espaços sem significado.
O resultado, depois de algumas eleições,
foi decepcionante. Sem serem capazes de enxergar as implicações e o
protagonismo social dos seus próprios costumes, as aranhas logo descobriram os
seus malandros e os seus golpistas. A disputa eleitoral, ao lado do
negacionismo do poder de seus estilos estabelecidos de prestígio de poder, fez
com que as aranhas de Machado de Assis até hoje urdam e desmanchem suas sacolas
eleitorais e, como Penélope, aguardem seu Ulisses – uma enorme paciência e ao
lado de uma velha sabedoria.
A preço do autodesconhecimento é a
repetição que conduz à ausência de história e de mudança. Pensar que se pode
controlar costumes ou, mais ingênuo que isso, ignorar que depois de D. João VI
tivemos um Pedro 01 e Pedro 02 e alguns mandachuvas é – no limite da estupidez
– desejar não mudar. É voltar ao autoritarismo aristocrático disfarçado de “estados
novos” podres de velhos, mostrando a saudade das ditaduras.
A miragem nacional denunciada por Machado
de Assis é que o republicanismo não é um mecanismo formalista isolado, pois
todo regime é contaminado pelo conjunto dos costumes da sociedade do qual faz
parte.
Impossível mudar? Claro que não. O ponto é
ter consciência que todo processo de mudança tem miragens e exige paciência com
o velho e energia para implementar o novo.
PS: Todo golpe troca teias por grades. Faz
parte dos golpes o patético “botar os tanques na rua”, essas armas do puro
poder, poluidoras da vida dos que apenas desejam viver em paz sem abdicar do
seu direito de construir suas teias. Esse valor que a maluquice de um
presidente aliado da morte não pode abolir.
*É antropólogo social e escritor, autor de ‘Fila e Democracia’
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