quarta-feira, 18 de agosto de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais /Opiniões

EDITORIAIS

Forças Armadas não são nem têm ‘poder moderador’

O Globo

Continua a prosperar no universo paralelo do bolsonarismo uma interpretação descabida da Constituição que justificaria uma intervenção militar em apoio aos desígnios golpistas do presidente Jair Bolsonaro. Essa leitura estapafúrdia do artigo 142 da Carta, que estabelece o papel das Forças Armadas na República, não passa de uma tentativa de aplicar um verniz, de conferir uma pátina de legalidade à ruptura da ordem democrática. Rechaçada pelo consenso dos juristas, ela já foi formalmente descartada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

A visão deturpada desse artigo atribui às Forças Armadas o exercício de um pretenso “poder moderador” — inexistente em todas as Constituições republicanas. Seria apenas mais um delírio das redes sociais, não tivesse sido ressuscitada nesta semana em entrevista do general da reserva Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Depois de pregar contra “excessos”, Heleno afirmou que a intervenção militar “poderia acontecer em momento mais grave”. Argumentou que, se o artigo 142 “existe no texto constitucional, é sinal de que pode ser usado”.

Ora, em nenhum momento o artigo 142 confere às Forças Armadas autoridade para intervir ou moderar crises entre o Executivo e os demais Poderes. Ao contrário, ele deixa claríssimas as três funções constitucionais de Exército, Marinha e Aeronáutica. Textualmente, “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Quem deu início à interpretação equivocada — e conveniente para as intenções golpistas de Bolsonaro — foi o jurista Ives Gandra Martins, ao enxergar nesse trecho a atribuição às três Forças da missão de moderar crises entre os Poderes. Só que isso é pura lorota, já que simplesmente não está escrito no texto constitucional.

Para quem tinha alguma dúvida, a questão foi dirimida pelo ministro Luiz Fux, presidente do Supremo, quando analisou no ano passado uma ação ajuizada pelo PDT sobre a missão das Forças Armadas. “Inexiste no sistema constitucional brasileiro a função de garante ou de poder moderador”, escreveu Fux em medida cautelar. “Para a defesa de um Poder sobre os demais, a Constituição instituiu o pétreo princípio da separação de Poderes.”

Noutro trecho, Fux esmiúça o papel do presidente da República: “A ‘autoridade suprema’ sobre as Forças Armadas conferida ao Presidente da República correlaciona-se às balizas de hierarquia e de disciplina que informam a conduta militar. Entretanto, por óbvio, não se sobrepõe à separação e à harmonia entre os Poderes, cujo funcionamento livre e independente fundamenta a democracia constitucional, no âmbito da qual nenhuma autoridade está acima das demais ou fora do alcance da Constituição”.

Foi o que voltou a esclarecer ontem a ministra Cármen Lúcia, em entrevista à jornalista Míriam Leitão, ao reiterar que as Forças Armadas “não são um poder à parte” e que o artigo segundo da Carta estabelece somente três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Cabe aos ministros do STF o dever de interpretar o texto constitucional. O general Heleno e os bolsonaristas que embarcam na interpretação desvairada do artigo 142 deveriam ouvi-los. Do contrário, não serão democratas genuínos.

É inaceitável a promiscuidade entre facções e gestão de presídios do Rio

O Globo

A prisão ontem da cúpula da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) do Rio, pela Polícia Federal, deveria levar a uma reflexão sobre como o estado gerencia mal uma das áreas mais sensíveis relacionadas à segurança pública. É estarrecedor que o secretário estadual de Administração Penitenciária, Raphael Montenegro, e os subsecretários Wellington Nunes da Silva e Sandro Farias Gimenes, responsáveis pelo sistema carcerário fluminense, tenham sido detidos numa operação da PF para desarticular um esquema criminoso na secretaria. Na casa de Montenegro, agentes apreenderam R$ 250 mil em notas de real e dólar.

A ação foi desencadeada depois da visita de Montenegro ao traficante Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP — chefe da maior facção criminosa do estado —, no presídio federal de Catanduvas, no Paraná, em 28 de maio deste ano. Segundo as investigações, Montenegro pedira para conversar com o detento no pátio. Como mostrou reportagem do GLOBO, visitas de secretários de Administração Penitenciária aos presos são inusitadas, tanto quanto a retirada dos detentos de suas celas. O diálogo, de acordo com a PF, foi sobre o retorno do bandido ao Rio.

Registre-se que a investigação só avançou devido ao aparato de segurança do presídio de Catanduvas, que conta com um sistema de escuta ambiental capaz de captar conversas no interior das instalações. Diferentemente do caos reinante na maior parte das penitenciárias do país, as unidades federais de segurança máxima têm celas individuais monitoradas em tempo real. Os dados são gravados e arquivados. Daí a conversa ter chamado a atenção. Evidentemente, não significa que sejam inexpugnáveis — já houve casos em que o esquema foi burlado, em geral com a conivência de funcionários —, mas, quanto mais obstáculos, melhor.

Sabe-se que, em todo o país, o sistema carcerário é um problema que demanda solução urgente. Abarrotados, com segurança e infraestrutura precárias, os presídios se transformaram em escolas do crime, protagonizando um papel bem diferente daquele que se espera deles. Chefes do tráfico e de milícias costumam comandar de dentro das celas seus negócios ilícitos. Ordenam invasões e mandam executar inimigos. Qualquer plano de segurança pública precisa levar em conta o que se passa dentro dos presídios.

Por ser uma área nevrálgica, a Administração Penitenciária tem de ser bem gerida. O mínimo a esperar é que seus gestores estejam acima de qualquer suspeita. É intolerável a promiscuidade da cúpula da Seap com facções criminosas. Agiram bem a Polícia Federal e o Ministério Público Federal. Mas prender e exonerar os acusados não encerrará a questão. Um dos aspectos mais assustadores do escândalo é constatar quão vulnerável é essa estrutura. O estado precisa fazer uma depuração em seus quadros para se blindar contra situações semelhantes.

A moderação do Senado

O Estado de S. Paulo

Em tempos em que a Presidência da República e a Câmara dos Deputados flertam com a irresponsabilidade, o Senado tem sido fonte de estabilidade para o País, com sua independência e equilíbrio. Desde o primeiro semestre, a CPI da Covid vinha mostrando a importância da separação de Poderes, ao investigar as ações e omissões do governo federal na pandemia. Mais recentemente, outros aspectos positivos da responsabilidade do Senado ficaram em evidência.

Em mais uma tentativa de criar conflito com outros Poderes, o presidente Jair Bolsonaro disse que vai apresentar no Senado pedido de impeachment dos ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Em tese, a inusitada ameaça deveria causar algum abalo. Afinal, é o chefe do Executivo recorrendo à ameaça explícita. Contrariado em seus interesses pelos dois ministros do Supremo, diz que vai acusá-los de crime de responsabilidade.

No entanto, em razão da atuação responsável do Senado, a ameaça não surtiu maiores efeitos. É notório que o tal pedido de impeachment não tem viabilidade, como o próprio vice-presidente Hamilton Mourão reconheceu. “Acho difícil o Senado aceitar”, disse.

A responsabilidade do Senado fez, portanto, com que a ameaça de Jair Bolsonaro, que podia ser uma nova fonte de instabilidade em um momento delicado como o atual, recebesse o devido tratamento. A fala foi vista como mais uma pirraça do presidente. A atuação de Jair Bolsonaro continua sendo grave, mas seus efeitos foram devidamente limitados.

Outra manifestação da independência do Senado em relação ao Palácio do Planalto – e que contribui para pôr limites à irresponsabilidade de Jair Bolsonaro – refere-se à escolha do novo ministro do Supremo. Segundo o Estado, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, tem deliberadamente atrasado a tramitação do processo de avaliação do nome indicado pelo Palácio do Planalto.

A indicação de André Mendonça para a vaga do STF é especialmente problemática. Sua atuação à frente do Ministério da Justiça mostrou que a defesa dos interesses bolsonaristas tem prevalência sobre seu compromisso com a Constituição. Além disso, o presidente Bolsonaro manifestou várias vezes que sua opção pelo nome de André Mendonça não teve nenhuma relação com os requisitos constitucionais. Foi uma escolha baseada na religião do candidato e em sua relação de amizade.

Fará muito bem, portanto, o Senado em não apenas segurar a tramitação dessa indicação, mas em rejeitar o nome de André Mendonça na sabatina. O papel do Supremo é defender a Constituição. Não há vaga na Corte para quem tem outras prioridades.

O Senado também tem sido – e pode ser ainda mais – fonte de tranquilidade para o País em seu papel de Casa Revisora. Nas últimas semanas, a Câmara dos Deputados acelerou a tramitação de projetos legislativos que são verdadeiros retrocessos institucionais, como a volta das coligações partidárias em eleições proporcionais.

Com a aprovação em primeiro turno da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 125/11, a Câmara dos Deputados mostrou não apenas desprezo pela qualidade da representação política. As coligações em eleições proporcionais distorcem o voto, dando-lhe efeitos muito diferentes aos esperados pelo eleitor, e estimulam legendas sem identidade programática. Os deputados revelaram também indiferença com a estabilidade da Constituição. Em 2017, Câmara e Senado aprovaram a Emenda Constitucional (EC) 97/2017, que proibiu as coligações em eleições proporcionais.

Com a mesma responsabilidade que vem tratando as investidas do presidente Jair Bolsonaro, cabe ao Senado rejeitar os retrocessos da Câmara. Com tantos problemas urgentes a serem enfrentados, não há razão para o Congresso piorar o ordenamento jurídico.

A quem questiona a razão do sistema bicameral no Legislativo, o Senado tem a oportunidade de dar, neste momento, uma resposta muito convincente. Como poucas vezes se viu, a moderação e a responsabilidade desta Casa Legislativa podem fazer toda a diferença.

Alternância no poder e democracia

O Estado de S. Paulo

É da natureza humana o apego ao poder uma vez conquistado. A fim de evitar que esta perniciosa tendência contaminasse as instituições políticas, visando a submetê-las às vontades de um soberano, sociedades que lutaram pela liberdade ao longo da História conceberam uma série de mecanismos que permitissem a alternância entre os detentores do poder de tempos em tempos.

No século 18, Montesquieu, expressão mestre do constitucionalismo moderno, ensinou que, “para que o abuso de poder seja impossível, é necessário que, pela ordem das coisas, o poder faça o poder parar”. Décadas mais tarde, James Madison sintetizaria o pensamento do iluminista francês ao escrever que “é preciso fazer com que a ambição seja neutralizada pela ambição” durante os arranjos para a elaboração da Constituição dos Estados Unidos.

Ao contrário da aristocracia, “o governo dos melhores”, a democracia admite governantes imperfeitos, mas não admite senhores, não admite autocratas. A alternância de poder é, pois, atributo primordial da democracia. Não se pode falar de uma coisa sem a outra. Uma democracia só está amadurecida quando a miríade de interesses coletivos em jogo em dada sociedade é mediada civilizadamente no âmbito das disputas políticas, vale dizer, na luta por espaços de representação na Presidência e no Parlamento regida por normas que todos aceitam como justas e às quais todos se submetem. Isto implica que sejam dadas a cada um daqueles diferentes grupos de interesse as condições – não só meramente formais – para vencer uma eleição e chegar ao poder se assim for a vontade dos eleitores.

Para fluir perfeitamente, no entanto, este pacto social há de ser uma via de mão dupla. Se, por um lado, forças políticas alternativas ao governo de turno devem ter a chance de substituí-lo por meio do voto, por outro, o grupo político ora detentor do poder precisa reconhecer o resultado do pleito em caso de eventual derrota. Caso contrário, será um traidor do mesmo pacto que propiciou sua ascensão ao poder e revelará de forma cabal, por vezes trágica, sua vocação liberticida.

Até pouco tempo atrás, a contestação de resultados de eleições cuja lisura foi inquestionável era um problema restrito às republiquetas. Não mais. Nas duas maiores democracias das Américas, Estados Unidos e Brasil, pôr em xeque a segurança do processo eleitoral se converteu em uma das táticas para manutenção de poder engendradas por populistas como Donald Trump e Jair Bolsonaro, não raro recorrendo à desinformação e às teorias conspirativas.

A bem da verdade, os brasileiros tiveram um aperitivo deste ardil na eleição presidencial de 2014, quando o então candidato Aécio Neves (PSDB) não reconheceu a vitória de Dilma Rousseff (PT), sob a alegação de “desconfianças propagadas nas redes sociais que colocaram em dúvida desde a votação até a totalização dos votos” dados à petista. Um despautério que, até Bolsonaro, parecia ter sido superado.

Apenas dois meses após tomar posse, convém lembrar, Bolsonaro subiu um degrau em sua escadaria de infâmias ao afirmar ter sido vítima de “fraude” em um pleito do qual saíra vencedor. Até hoje repete a cantilena de que teria vencido a disputa no primeiro turno. E até hoje não apresentou uma evidência sequer, por mais tênue que fosse, que corrobore sua perigosa alegação. “Se o presidente da República tiver provas (de fraude na eleição), tem o dever cívico de entregá-la ao Tribunal Superior Eleitoral. Estou com as portas abertas. O resto é retórica política, são palavras que o vento leva”, disse há poucos dias o presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso.

No caso americano, o vigor das instituições democráticas foi submetido a um teste de estresse antes inimaginável, mas, ao final, prevaleceram as leis e a vontade dos eleitores. O Brasil tem encontro marcado com esta agitação no ano que vem, caso Bolsonaro não seja reeleito. O que determinará se o movimento será choro de perdedor ou, de fato, uma crise institucional será a força das instituições pátrias.

O ‘direito’ de faltar ao serviço

O Estado de S. Paulo

Depois de terem resistido ao máximo à decisão das autoridades educacionais estaduais de retomar as aulas presenciais, sob a justificativa de que só estariam seguros quando toda a população estivesse vacinada, os professores da rede pública de ensino básico voltaram a entrar em confronto com o governo do Estado de São Paulo.

Desta vez, o problema é o projeto de lei enviado pelo governador João Doria (PSDB) à Assembleia, com o objetivo de reduzir o número de faltas permitidas e de facilitar a demissão dos servidores públicos menos assíduos. O projeto abrange todo o funcionalismo, mas seu maior impacto recai sobre o professorado.

Pela legislação em vigor, as faltas injustificadas não podem ultrapassar 15 dias seguidos ou 45 dias intercalados. Além disso, 6 faltas podem ser abonadas, sem desconto no salário, e outras 24 podem ser justificadas. Os servidores também gozam de outras possibilidades de afastamento, como 6 faltas para ida ao médico e 1 falta médica parcial, que permite aos docentes com 35 horas-aula faltar três horas por dia pelo mesmo motivo, sem limite de dias no ano.

A iniciativa do governo estadual foi tomada após a Secretaria Estadual da Educação ter detectado que a média de faltas por docente da rede pública passou de 8,1 para 9,5 dias entre 2015 e 2018. Já a duração de licenças pulou de 18,6 para 29,8 dias. Ao todo, são quase 40 dias de ausência em sala de aula por professor. Segundo a Secretaria, 13.122 professores, ou 10% dos docentes da rede estadual de ensino básico, foram responsáveis por 41% das faltas em 2018.

O crescente índice de absenteísmo do professorado paulista vem gerando dois problemas graves. Por um lado, ele desorganiza o planejamento anual das atividades didáticas e exige que a Secretaria da Educação tenha de providenciar substitutos, para que os alunos não fiquem sem aulas. Por outro lado, essa troca de professores prejudica o desempenho das turmas.

É por esse motivo que o nível de aprendizagem escolar vem caindo em São Paulo, quando comparado com as demais unidades da Federação. Levantamentos feitos há uma década pela Secretaria Estadual da Educação apontam que um ponto porcentual a mais no índice de absenteísmo dos professores da rede pública estadual de ensino básico acarreta para os estudantes da quarta série do ensino fundamental uma perda de 7,5% nas notas de Português e de 8,5% em Matemática.

Enviado à Assembleia com pedido de tramitação em regime de urgência, o projeto do governo estadual acaba com as 6 faltas abonadas. Também reduz o número de faltas necessárias para a exoneração de um servidor absenteísta, prevendo que ele será demitido se tiver faltado mais de 15 dias consecutivos ou 20 intercalados de faltas injustificadas. Também se passa a exigir perícia em todos os casos de licença médica, independentemente do prazo de duração. Autoriza a Secretaria da Educação a promover a contratação de docentes temporários no caso de greves longas dos professores concursados. Mantém, porém, a chamada bonificação de rendimento do professorado.

Para a presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial de São Paulo (Apeoesp), Maria Izabel Noronha, que é deputada estadual pelo PT e faz oposição ao governo Doria, o projeto promove um “desmonte do serviço público”. Também critica a revogação do “direito” de os servidores terem “pelo menos seis faltas anuais”. E convocou uma paralisação dos docentes para a próxima quinta-feira, pedindo ainda que os docentes pressionem os deputados estaduais, “sobretudo da base do governo”, em suas residências, para rejeitar o projeto.

Os argumentos da Apeoesp não são minimamente convincentes. Afinal, todo governo tem o dever de tornar a máquina administrativa mais eficiente e de impedir que ela seja capturada pelos setores articulados do funcionalismo, em detrimento dos cidadãos-contribuintes. E também tem a obrigação de fazer o que estiver ao seu alcance para aumentar os níveis de aprendizagem na escola pública. Nesse sentido, o governo paulista está no caminho certo.

A decisão do Senado

Folha de S. Paulo

Exame de indicação ao STF deve levar em conta ataque de Bolsonaro a instituições

Noticia-se que ministros e aliados tentam dissuadir Jair Bolsonaro do plano, bravateado à moda do pior populismo, de pedir o impeachment de dois ministros do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes.

Calcula-se em Brasília que o arroubo presidencial, mais uma vez, não dará em nada —ou, mais precisamente, dará apenas em tensão política e institucional, o que não deixa de ser um êxito na cruzada antidemocrática do mandatário.

Desta vez, arrastou-se para o conflito estéril o Senado Federal, ao qual compete a decisão sobre o impedimento de ministros do STF por eventuais crimes de responsabilidade. A ofensiva, por si só, pode se desfazer com uma canetada do presidente da Casa; os senadores, entretanto, terão deliberações mais espinhosas pela frente.

Bolsonaro não pretende mais do que insuflar seus seguidores contra os dois magistrados —Barroso, ora à frente da Justiça Eleitoral, por ter contestado as mistificações lançadas contra as urnas eletrônicas e a lisura de pleitos passados; Moraes, por conduzir inquérito, de fato heterodoxo, que mira ataques de bolsonaristas à democracia.

Resta evidente que a cúpula do Judiciário reage a ataques patrocinados pelo presidente da República desde o ano passado, quando a mais alta autoridade do país participou de atos com bandeiras golpistas. Reage, ademais, à omissão renitente do procurador-geral, Augusto Aras, diante dos desmandos.

É nesse contexto que o Senado examinará o segundo indicado por Bolsonaro ao Supremo, seu ex-auxiliar André Mendonça, além da recondução do próprio Aras ao comando do Ministério Público.

Fazê-lo de modo meramente protocolar, como tem sido a praxe histórica, será contribuir para a degradação das instituições.

No primeiro caso, trata-se de posto a ser ocupado até a aposentadoria compulsória, aos 75 anos —e há o precedente de Kassio Nunes Marques, a outra escolha do atual governo para a corte, onde dá mostras sucessivas de alinhamento aos interesses do Planalto.

Mendonça, 48, quando ministro da Justiça, buscava agradar ao chefe com tentativas de usar a Lei de Segurança Nacional, herança da ditadura militar, contra críticos do governo. Além da subserviência, a condição de pastor presbiteriano pesou em sua indicação.

Não será surpresa se os senadores optarem pela estratégia menos conflituosa de retardar o trâmite do processo, no qual o postulante precisa passar por sabatina e receber a aprovação da maioria da Casa. Trata-se de expediente com prazo exíguo de validade, porém.

Logo será necessária uma atitude mais clara ante Bolsonaro —que não faz segredo de suas intenções.

Retomada com máscara

Folha de S. Paulo

Volta de atividades em SP torna ainda mais essencial o comportamento responsável

Com o relativo arrefecimento da pandemia e após quase um ano e meio de restrições, compete ao administrador público a tarefa de encontrar um ponto de equilíbrio entre as recomendações mais draconianas de especialistas e o compreensível anseio da população e dos agentes econômicos por um retorno à normalidade.

A manutenção de controles muito rígidos, num momento em que a vacinação avança e o número de óbitos cai, pode provocar aflição e desânimo no público, além de agravar os danos sociais.

Já um relaxamento geral tende a suscitar a sensação triunfalista de que a pandemia está vencida e resultar num repique de infecções e mortes, com a consequente retomada das restrições, como se vê em algumas partes do mundo.

O governo paulista começa, nesta terça (17), uma tentativa de encontrar um meio-termo —não sem divergências no colegiado de especialistas que assessora a gestão, agora reduzido de 21 para 7 membros.

Conforme anunciado pelo governador João Doria (PSDB), foram abolidas as limitações de horário e de lotação para estabelecimentos, à exceção de aglomerações em casas noturnas e espetáculos.

A decisão se ampara na redução do número de hospitalizados e no progresso da imunização. Os menos de 9.000 pacientes hoje internados representam o mais baixo patamar desde novembro de 2020.

A vacinação já atinge com ao menos uma dose 71% dos paulistas, índice semelhante aos de Reino Unido e França, conquanto apenas 30% estejam plenamente protegidos, ante 60% e 53% nos outros dois casos, respectivamente.

Porém não pode ser tratado como detalhe o fato de que ainda são registradas cerca de 8.000 novas infecções e 250 mortes por dia. Tampouco deve ser ignorado o avanço da variante delta, mais contagiosa.

Assim, é acertada a decisão estadual de manter, ao menos até o fim do ano, a obrigatoriedade do uso de máscaras, a mais eficiente medida de prevenção fora a vacina.

A importância cabal do equipamento recomenda um incremento da fiscalização nos estabelecimentos e nas ruas, assim como demanda campanha de conscientização. Deveria ser considerada ainda a distribuição gratuita da proteção em locais de grande circulação.

Por fundamentais que sejam as obrigações do poder público, cabe aos cidadãos também agir com responsabilidade. Só assim se evitará um retrocesso prejudicial a todos.

Uma derrota anunciada dos EUA no Afeganistão

Valor Econômico

Agora o Talibã pode promover um retrocesso em toda a linha, embora existam motivos para que não façam isso e para que o pragmatismo penetre o manto do fanatismo

O resultado da aventura americana no Afeganistão foi semelhante às congêneres anteriores: fracasso. Vinte anos após a invasão do país e a expulsão em poucos meses dos sunitas radicais do Talibã, que abrigavam a Al Qaeda de Osama bin Laden, a saída programada das tropas e a ocupação a jato do território pelos talibãs rememoraram coreografias de outras intervenções malsucedidas. Apesar das semelhanças, o xadrez geopolítico é hoje diferente de quando os EUA se perderam no pântano vietnamita e mesmo de quando foram colher o fracasso nas montanhas afegãs em 2001. A coleção de derrotas é obra bipartidária, de republicanos e democratas.

O retorno súbito do Talibã, após o completo domínio do território sem grandes batalhas - com a rendição de tropas pagas, armadas e sustentadas pelos EUA - foi mais um dos muitos atos da calamitosa política externa do presidente Donald Trump. Trump retirou o chão de seus aliados em Cabul ao negociar à revelia deles um acordo de paz com o Talibã em 2020 e estabelecer um prazo para a retirada das tropas americanas. Ele concluiu de forma errada uma aventura que também começou mal na gestão do republicano George W. Bush. O intuito era eliminar a Al Qaeda do mapa e seus protetores, os talibãs. O auge da escalada, no entanto, foi obra de Barack Obama quando, em 2009, 110 mil soldados foram enviados ao país, abrindo caminho para a perseguição a Bin Laden, morto em maio de 2011.

Pouco havia a fazer depois disso no Afeganistão, mas o governo americano pretendia exportar a democracia, seu slogan para intervenções mundo afora. Patrocinou um governo local na esperança que ele fosse capaz de se sustentar e administrar o país. Duas décadas depois, ruiu como castelo de cartas.

Os aliados americanos, como frequentemente acontece, não eram exatamente populares e muito menos honestos. Foram membros de uma elite vista como corrupta, em um país onde viceja a milionária rede clandestina do tráfico de ópio, que também nutre o Talibã. Ocorreu também com o governo fantoche de Van Thieu, no Vietnã do Sul, corrupto, despótico e odiado pela maioria. O medo ao reinado de terror do Talibã, que se abateu principalmente sobre as mulheres, não tornou os sucessivos governos apoiados pelos EUA populares ou respeitados.

Os EUA gastaram perto de US$ 1 trilhão no Afeganistão, mas uma parcela ínfima foi destinada à melhoria econômica e social de um país miserável. Dos US$ 946 bilhões, US$ 925 bilhões foram para cobrir os gastos das próprias tropas americanas e dos militares afegãos e apenas US$ 21 bilhões para ajuda econômica, pouco mais de US$ 1 bilhão para cada ano de permanência (ver artigo de Jeffrey Sachs na página ao lado).

Houve um período de liberdades democráticas e algum desenvolvimento, insuficientes, porém, para vencer a batalha pelo apoio dos afegãos. Agora o Talibã pode promover um retrocesso em toda a linha, embora existam motivos para que não façam isso e para que o pragmatismo penetre o manto do fanatismo. O principal deles é que o mundo mudou. A guerra fria, que moveu ideologicamente a guerra no Vietnã, terminou. Bin Laden está morto, a Al Qaeda não se levantou, o Exército Islâmico (EI, outro habitante das redondezas) foi derrotado, e o inimigo preferencial dos EUA é distinto - a China, que saudou o novo governo e usou a retirada americana como prova de traições a que os EUA submetem seus aliados.

Abrigar terroristas que atacam os EUA, como bin Laden deixou o Talibã duas décadas fora do poder, um preço talvez alto para se pagar de novo. A China, aliada de primeira hora, não quer problemas em suas fronteira com o Afeganistão - perto dela “reeduca” muçulmanos uigures em Xinjiang. O Talibã tem apoio da Arábia Saudita, aliada dos EUA.

É prematuro dizer qual rumo seguirá o Talibã. As primeiras indicações, dadas em entrevistas pelos porta-vozes do grupo, apontam em direção de alguma descompressão em relação aos costumes, as mulheres e não perseguição aos afegãos que apoiaram o regime derrubado de Ashraf Ghani. Por outro lado, será difícil romper com os velhos amigos, como Al Qaeda e EI.

Biden, que como vice de Obama foi contra o envio de tropas ao país, poderia ter planejado e escalonado a retirada. Ao fazê-la de forma abrupta, provocando o caos, trouxe para si parte do ônus do fracasso de uma desventura que nem ele nem seu partido iniciaram. Seu diagnóstico, porém, foi correto: os EUA jamais venceriam uma guerra no Afeganistão.

 

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