Valor Econômico
Se a crise piorar, os parlamentares não
poderão mais se esquivar de frear ações antidemocráticas
Eu nunca imaginaria que em plena vigência
da pandemia - tragédia que resultará na morte de mais de 600 mil brasileiros
até o fim deste ano - o Brasil vivenciaria uma crise institucional gerada pelo
seu presidente. É triste ouvir repetidas manifestações veladas com viés
antagônico ao estado de direito por parte do presidente Jair Bolsonaro e de
membros do seu governo.
Há décadas que o Brasil não se sujeitava a
tamanha insegurança institucional. Em um momento com tantos problemas
sanitários, educacionais e econômicos, choca observar o presidente inserir um
grau tão elevado de risco à estabilidade política. O país não vivenciou embates
iguais aos de Bolsonaro contra os outros poderes nem mesmo nos dois últimos
processos de impeachment.
Desde o início do seu governo, o presidente tem fomentado atritos com os principais órgãos de imprensa e vários jornalistas. A reclamação de haver um viés contrário ao governo tem sido um discurso recorrente de vários presidentes, mas Bolsonaro tem levado esse embate ao extremo, com comentários inconcebíveis para o ocupante do principal cargo do Executivo que, por definição, tem de buscar o entendimento.
O clima belicoso cresceu muito desde a
eclosão da pandemia, com o presidente adotando postura negacionista sobre o
alcance, a gravidade e a propagação da contaminação por covid-19, ao mesmo
tempo em que se voltava contra as políticas de restrição à mobilidade
patrocinadas por entes regionais para conter a doença. A campanha e defesa de
tratamentos comprovadamente ineficazes contra o vírus, a demora na contratação
de vacinas e as picuinhas contra o esforço do governo paulista em produzir
vacinas no Instituto Butantan demonstram a estratégia do presidente de fomentar
desavenças, independentemente das circunstâncias.
As críticas de Bolsonaro aos
posicionamentos do STF que contrariam suas vontades, em particular dos
ministros Luiz Fux e Alexandre de Moraes, aumentaram em demasia, com
intimidações inconsistentes com o papel de chefe do Executivo. As suas
acusações de falcatruas eleitorais com o uso de urnas eletrônicas, mesmo tendo
sido eleito por esse sistema, as reiteradas promessas nunca cumpridas de
comprovação da violabilidade dessas urnas - clara propagação de “fake news” - e
a campanha fracassada pelo voto impresso têm tornado o ambiente ainda mais
conflituoso. As afirmações do presidente de que uma eventual derrota eleitoral
em 2022 só ocorreria por conta de fraudes nas urnas - mesmo com as atuais
pesquisas indicando sua derrota - e, portanto, não seria acatada, são sinais de
risco de enfrentamentos que podem ultrapassar o campo legal.
O ruído político ultrapassou os limites da
razoabilidade a ponto de proliferarem cartas de defesa do estado de direito por
parte de grupos dos mais diversos espectros, vários dos quais compostos por
eleitores de Bolsonaro em 2018. Os riscos tornam-se irrefutáveis quando surgem
documentos, mesmo que por ora informais, assinados por diversas associações de
classe, inclusive a Febraban e a Fiesp, historicamente caracterizadas pela relação
pacata com os poderes constituídos, transmitindo sua contrariedade com a
deterioração política.
As manifestações de 7 de setembro foram
divulgadas sob agendas amplas, visando obter forte adesão: a defesa do
patriotismo e da fé no poder de Deus; a contrariedade com os ministros do STF
que estariam colocando em risco a liberdade; a rejeição às interferências do
Congresso e do Judiciário prejudiciais ao cumprimento de pautas liberais e de
costumes do governo; a disposição por lutar contra o comunismo; e o apoio à
intervenção das Forças Armadas na defesa da democracia.
Os reiterados e fantasiosos comentários do
presidente sobre ameaças comunistas - seja lá isso o que for - e ataques contra
a democracia e a liberdade, bem como as repetidas falas a respeito de golpes e
da eventual necessidade de interferência militar, já não podem ser lidos apenas
como devaneios ou estratégias políticas. A elevada frequência do presidente em
eventos das Forças Armadas e das polícias militares, em conjunto com os seus
discursos inflamados, têm fortalecido a impressão de que busca apoio da
instituição a favor de aventuras conspiratórias e autoritárias.
O número de participantes da manifestação
de 7 de setembro será interpretado pelo presidente, por razões óbvias, como uma
aprovação integral da sociedade ao seu governo, suas ameaças e suas críticas
aos demais Poderes, em particular ao STF. Os discursos do presidente nos
protestos foram explícitos sobre os riscos para a estabilidade das instituições
democráticas, sobretudo ao mencionar suposta convocação do Conselho da
República, que tem por função pronunciar-se sobre intervenção federal, estado
de defesa e estado de sítio.
Em suma, não há mais como crer que os
ataques do presidente contra ações derivadas do funcionamento normal dos demais
poderes sejam simples jogo político e partidário, mesmo quando mesclados por
defesas ardilosas do estado de direito e da harmonia. Não há mais espaço para o
apoio a campanhas do “nós” contra “eles”, quando os “nós” são poucos e os
“eles” são, na realidade, quase todos nós.
Contra os discursos radicais e extremados,
temos de defender o direito inalienável ao voto, como forma, no seu devido
tempo, de substituir ou reeleger governos. A agenda para a manifestação de 12
de setembro é, portanto, transparente: a defesa do voto nas urnas eletrônicas
em outubro de 2022 sob um contexto de paz e de respeito à vontade dos outros.
Caso a crise institucional e política
continue piorando, não haverá mais condições para os parlamentares, em
particular o presidente da Câmara dos Deputados, se esquivarem de utilizar os
instrumentos previstos na Constituição para frear comportamentos e ações
nitidamente antidemocráticos. Não é possível conviver com um aprofundamento
contínuo da crise em várias frentes e continuar sem nenhuma ação prática na
direção da abertura do processo de impeachment do presidente. É preciso dizer:
“Basta!”.
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