- O Globo
Os remédios da Constituição de 1988 podem
ser eficazes para evitar que Jair Bolsonaro dê um golpe de qualquer dimensão ou
natureza, mas não são suficientes para removê-lo do posto diante de suas
diárias e cada vez mais diretas ameaças à própria existência da democracia. O
que nos leva à possibilidade real de termos de conviver por um ano e três meses
com esse caos provocado única e exclusivamente pelo presidente da República,
caso alguns atores não sejam instados a mudar sua conduta.
Falta ao nosso ordenamento jurídico uma
vacina, o tipo de rito que permita conter de forma mais clara e rápida esse
tipo de golpismo do século XXI, de que o presidente brasileiro é um expoente
cada vez mais peculiar, porque tanto bebe das fontes internacionais quanto
passa a ser visto como case a inspirar outros aprendizes de
ditadores, pelas dimensões e pela importância estratégica do Brasil.
O impeachment, tratamento clássico para
crimes de responsabilidade e para momentos em que governos se mostram
disfuncionais, não é uma opção concreta no momento, mesmo diante da exorbitação
de todos os limites cometida por Bolsonaro em seus dois discursos neste 7 de
Setembro de conformação antidemocrática.
Arthur Lira é cúmplice dos sucessivos crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro não só contra os demais Poderes, mas também no enfrentamento da pandemia. Só deixará de ser conivente se houver uma pressão tremenda de todos os partidos do Centrão, grupo que coordena à base de dinheiro público na veia. Como ainda não cessou a fonte de recursos, inútil contar com isso.
A saída propugnada pelo ministro Ricardo
Lewandowski em artigo recente — enquadrar o presidente da República por crime
contra a existência do próprio Estado Democrático — depende da ação do
procurador-geral da República, o igualmente cúmplice Augusto Aras. Ainda que
ele seja tomado de uma independência súbita, uma eventual denúncia apresentada
pelo procurador-geral contra o presidente tem de passar pelo crivo da mesma
Câmara comandada por Lira.
O que nos leva à angustiante situação de
estarmos num labirinto, presos a Bolsonaro, a seus arbítrios e à rede de
condescendência que foi criando em torno de si à base de assaltos diários nunca
contidos contra as instituições.
Ele não se moderará. Depois de romper todos
os limites do bom senso na Esplanada dos Ministérios e na Avenida Paulista,
nada indica que recuará. Pelo contrário: além de ameaçar não cumprir decisões
judiciais, reciclou a ameaça de não aceitar o resultado das urnas.
Que não se incorra no erro de subestimar
seu poder de persuasão contando cabeças nos protestos deste feriado: foram
muitas, o suficiente para manter o Brasil preso a uma agenda distópica daqui
até as eleições, para incalculável prejuízo da economia, do tecido social e das
mesmas instituições que resistem aos trancos e barrancos a atentados contra sua
existência.
Diante da constatação do impasse, ministros
do STF reconhecem a inexistência de mecanismos específicos para lidar com o
golpismo altamente digital, financiado de forma sub-reptícia, que subverte
conceitos como liberdade de expressão e a própria democracia. Daí por que os
inquéritos que atualmente estejam sob a responsabilidade do ministro Alexandre
de Moraes sejam a barreira possível à expansão desse mecanismo — e, justamente
por isso, o alvo da ira bolsonarista.
Que se dependa de instrumentos provisórios
e, mesmo eles, de alcance limitado para moderar um presidente incontrolável é a
prova cabal de que a Constituição pode não ruir diante das investidas de
Bolsonaro contra ela, mas sairá bastante esvaziada e combalida, como de resto
todo o país, dos quatro anos de turbação da vida nacional a que os eleitores
nos condenaram em 2018.
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