Valor Econômico
Teoria do “mito político” indica edição de
novos atos e Bolsonaro tende a manter o ritmo de mobilizações Brasil afora. Não
irá parar
Sem máscara, o apoiador do presidente Jair
Bolsonaro estacionou o carro em uma rua paralela à Esplanada dos Ministérios
depois de enfrentar um trânsito leve, mas incomum em Brasília para um domingo
de manhã. Apesar do calor e da baixíssima umidade do ar, havia muita gente no
centro da capital federal para prestigiar o ato convocado pelo chefe do
Executivo.
Enquanto caminhava até o que acreditava ser
uma barreira policial, o apoiador esquecia, pelo menos por alguns instantes,
dos problemas do dia a dia que teimam em crescer. E falava para quem quisesse
ouvir que esta é a hora de redobrar o suporte ao “mito” que haviam conduzido ao
Palácio do Planalto no pleito de 2018. Afinal, Bolsonaro estava sendo impedido
de governar por forças internas e, portanto, era responsabilidade de todos
evitar que a esquerda voltasse ao poder em 2022.
Em meio à interação, uma expressão de
alívio: ninguém teria o corpo revistado; bolsas e sacolas tampouco seriam
reviradas. Elogios à Polícia Militar. Os PMs acenavam de volta.
Horas antes, esta mesma corporação já havia dado sinais de complacência quando não resistira à invasão de caminhões e caminhonetes que insistiriam em ocupar áreas próximas ao Congresso, a despeito da certeza de que serviriam de plataforma para novos ataques aos demais Poderes. No entanto, àquela altura, não havia mesmo perspectiva de confusão.
Até deu tempo de pesquisar os preços de
novos adereços. A bandeira do Brasil com a estampa do presidente era vendida a
R$ 35, mas saía por R$ 30 sem muito esforço de negociação. O mesmo valia para
quem quisesse colar um adesivo em todo vidro traseiro do carro. O autocolante
mais simples podia ser adquirido por R$ 5, mesmo valor de uma máscara estampada
com o busto de Bolsonaro.
Como era de se esperar, pouquíssima demanda: a máscara era um fiasco de vendas, mesmo sendo equipamento indispensável para o combate à pandemia. A camisa promovendo a candidatura à reeleição de Bolsonaro, contudo, era artigo raro. Estoques esgotados.
Ninguém parecia se importar com eventual
acusação de que se realizava campanha eleitoral antecipada, mesmo que
alertassem para o fato de que foram destinadas grandes somas de dinheiro
público para que o helicóptero presidencial sobrevoasse a multidão por diversas
vezes. A preocupação com alta do preço dos combustíveis, aliás, não apareceu em
nenhum momento da manifestação. Tampouco foram citados outros problemas
enfrentados cotidianamente pela população, como a inflação, o risco de apagão,
a falta de vacinas. Não há registro de faixas pedindo medidas voltadas à
geração de emprego e à retomada da economia.
Os manifestantes seguiram o roteiro
definido pelo presidente: cobraram a destituição de ministros do Supremo
Tribunal Federal (STF), a intervenção no Parlamento e a adoção do voto
impresso. Uma agenda golpista, acompanhada por palavras de ordem segundo as
quais os que estavam na manifestação “autorizam” aquele que chamam de “mito” a
agir em nome da população.
Aqui, vale resgatar um verbete do
“Dicionário de Política”, de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco
Pasquino. Publicado pela Editora UnB, o livro explica que o conceito de “mito
político” surgiu no início do século XX e inicialmente enfrentou resistências
para se tornar mais largamente aceito. Depois, até passou de fundamentação
teórica utilizada pela esquerda para uma doutrina adotada por grupos e partidos
de extrema direita.
Naquele primeiro momento, anotam os
autores, quem se debruçou sobre a força motriz do “mito político” foi Georges
Sorel. Ele definia a própria “greve geral proletária” como um “mito”. Em outras
palavras, “uma organização de imagens capazes de evocar instintivamente todos
os sentimentos que correspondem às diversas manifestações da guerra iniciada
pelo socialismo contra a sociedade moderna”. Ainda de acordo com o dicionário,
para Sorel, portanto, o mito político não é um ato intelectual, analítico e
abstrato, mas sim um ato de vontade baseado na aprendizagem intuitiva ligada
“às mais fortes tendências de um povo, de um partido, de uma classe” e, por
isso, particularmente apto a sustentar a ação política de massa. É a forma de
consolidar um grupo sem passar por processos altamente intelectualizados, ou
seja, por meio de símbolos e ações coletivas.
Tais símbolos, muitas vezes utilizados para
aventuras autoritárias, podem ser, por exemplo, o culto da pátria, dos mortos,
do sangue dos mortos que continuam correndo nas veias dos vivos, da cultura,
dos costumes e de instituições que transmitem esses valores. “A liminaridade do
mito nasce do fato de que ele, sendo fenômeno que intervém e age em momentos de
crise, dirigindo-a e solucionando-a a partir de um questionamento global dos
institutos culturais, é o vestíbulo da formação da consciência social e da
criação das estruturas do agir e do pensar. O mito, portanto, estabelece e
delimita um conjunto de possibilidades - o campo do possível - que é um dos
sentidos da liminaridade; ao mesmo tempo, porém, demonstra-se ambíguo em seu
conteúdo porque a ordem que cria ou reconstrói está sempre aberta à
possibilidade de desordem, tanto que exige periódicas prestações rituais para
se manter”, agrega o verbete.
Da teoria à prática, Bolsonaro tende a
manter o ritmo de mobilizações Brasil afora. Encerrada a manifestação de
Brasília, logo viajou para São Paulo. Não irá parar.
A turma foi se desmobilizando, mas agora sem
a ordem que marcara o início do dia. A polícia novamente só observava e quem
tentava organizar o fluxo era ignorado. “Furar fila é coisa de petista, é coisa
da esquerda”, gritou um mais indignado. “Para que essa ignorância, amigo?”,
respondeu o espertinho flagrado, logo retirado do princípio de discussão pela
mulher. “Petista, não.” Segue a massa bolsonarista com seus símbolos e imagens.
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