Folha de S. Paulo
É preciso que as más ideias sejam
discutidas para que as boas possam triunfar
O identitarismo que parece ter-se
assenhorado de nossa época, em especial do pensamento de esquerda, tem dois
problemas, um de conteúdo e outro de método. Comecemos pelo conteúdo.
A esquerda tradicional cerrava fileiras no universalismo. A igualdade de direitos derivava da humanidade comum, não de características de grupos como negros, mulheres, homossexuais. Não se contesta que essas minorias sofram mais discriminação, o que justificaria priorizar suas demandas. A questão é que o tipo de discurso que se adota faz diferença. Enquanto a esquerda clássica inscrevia o fim da discriminação no contexto de um movimento de emancipação que beneficiaria a todos, a política identitária ressalta as diferenças entre as pessoas sem apontar nada de universal.
Não me parece despropositada a tese de que
o deslocamento da esquerda para o identitarismo contribuiu para a polarização e
os ressentimentos que hoje alimentam a extrema direita.
A questão do método é ainda mais
disruptiva. O identitarismo extrai sua força do discurso moralizante. As
questões que o movimento levanta são reais, mas, ao enquadrá-las como apenas
morais —e não como argumentos que precisam ser examinados—, ele se sente no
direito de interditar o debate, caso não veja no outro lado credenciais éticas
que considere aceitáveis. Só que esse julgamento é muitas vezes feito com base
em critérios subjetivos como a “ofensividade” do discurso ou até em como
indivíduos específicos se sentem em relação a ele. Esse é um beco sem saída,
porque não há declaração não trivial que não desagrade a alguém. Daí os
cancelamentos e lacrações.
Isso é grave porque, como já ensinava Stuart
Mill, precisamos que as más ideias circulem e sejam discutidas para que as
boas possam triunfar. Eu diria até que, não fossem os sofistas e a necessidade
que Sócrates viu de rebatê-los, não de calá-los, a filosofia como a conhecemos
não existiria.
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