O Globo
Não terá sido de propósito. Nem Paulo
Guedes, um visionário, enxergaria tão longe. Sua offshore foi constituída em
2014 e abastecida entre aquele ano e o seguinte. Investidor privado, decerto
pretendia proteger parte de seus dinheiros da economia brasileira sob a gestão
de Dilma Rousseff. Deu certo. O tempo passaria. E a empresa nas Ilhas Virgens
Britânicas, um paraíso fiscal, continuaria dando certo: hoje servindo a que o
ora ministro — não terá sido de propósito — proteja alguns de seus milhões de
si próprio. Homem de sorte.
Sorte à parte, esse é o aspecto imoral da
história: que o ministro da Economia — o fiador da bagaça, um estelionato
eleitoral — tenha uma porção de seu patrimônio a salvo dos efeitos do governo
fiado, o de Jair Bolsonaro. O sujeito serve a um populista-autocrático que é o
centro gerador constante de instabilidades que minimiza e chama de “barulho”,
mas tem uma fortuna isenta dos produtos da imprevisibilidade do chefe (e,
claro, da mordida do Leão).
Não terá sido de propósito. Os dinheiros
estavam lá; e lá ficaram. Ficaram, como por inércia, até que tivéssemos — não
terá sido de propósito — um ministro da Economia com grana em offshore. (Tudo
declarado.)
Essa imoralidade não é pouca coisa. Guedes vendeu a união entre conservadores e liberais como o casamento, afinal, da ordem com o progresso. Ele, liberal reformista, domaria a natureza beligerante de Bolsonaro, líder corporativista que erguera empresa familiar dentro do Estado. Com dinheiros tantos fora do Brasil, mesmo ante a inauguração da nova era, não estarão errados os que identificarem na inércia do ministro a admissão de que não seria tão fácil quanto apregoara.
Não terá sido de propósito. Os dinheiros já
estavam lá; e lá ficaram. Ficaram, como por inércia, para que o ministro —
investidor instintivo — não precisasse confiar 100% nas próprias promessas.
Para que não precisasse confiar 100% em si. (Tudo declarado.) Não terá sido de
propósito.
(Houve, no entanto, quem, emparedado pela
peste, confiasse 100% no tratamento precoce, tornado — sob aval do Ministério
da Economia — política de Estado. Nada a ver com a liberdade do médico para
receitar. Não. Política de Estado, conforme visto no Amazonas. Política de
Estado, chancelada pelos experimentos da Prevent Senior. Política de Estado,
exposta pela blitz de Bolsonaro e seus empresários — com Guedes na marcha —
contra e sobre o Supremo. Um estímulo, o remedinho, para que as pessoas se
sentissem seguras, protegidas e fossem às ruas. Buscava-se a tal imunidade de
rebanho, sem que a economia desacelerasse. Colheu-se a subestimação do vírus, a
negligência na compra de vacinas e a interrupção do auxílio emergencial no auge
da pandemia entre nós. Tudo expresso no Orçamento, os gatilhos para que a
pobreza se acirrasse. Não haveria segunda onda. A economia crescia em V. São
quase 600 mil os mortos. O atraso na vacinação condicionando a lenta retomada
econômica do país.)
Tudo declarado. Não terá sido de propósito.
Todo mundo sabe — e repete — que não é
ilegal ter dinheiro fora do Brasil, mesmo em empresas offshore, desde que
obtido de modo lícito e devidamente comunicado aos órgãos de controle e
fiscalização. Verdadeiro. No caso de um ministro de Estado, porém, há camadas
adicionais de exigências — aquelas que derivam da ética pública. Pergunta
objetiva: ministro da Economia com grana em offshore é aceitável? Mesmo que sem
realizar trânsitos cambiais, é aceitável?
Ainda que declarada e sem qualquer
movimentação, fatos são que a empresa offshore do ministro da Economia opera
sob condições de sigilo inacessíveis à imensa maioria da população e lhe
resguarda milhões dos puxadinhos tributários em que mexe para piorar a situação
e dos conflitos institucionais forjados artificialmente pelo presidente a que
serve como fachada liberal. É legal. E eticamente fedido.
Não terá sido de propósito. Os dinheiros já
estavam lá; e lá ficaram. Ficaram, como por inércia. E declarados. O homem teve
sorte. Deu certo. Paulo Guedes, pisando as virgens ilhas distraidamente, poupou
os seus guedes do custo Bolsonaro-Guedes. O investidor Guedes se antecipando —
sem saber — ao ministro Guedes. Mirou em Dilma; colheu defesa também contra o
mito e seu 7 de Setembro permanente.
E assim ficaremos — com Guedes protegido
contra o Mantega em que se converteria, somente mais uma imoralidade — se
comprovado for que o ministro não mexeu na grana desde que tornado o
responsável pela política econômica do Brasil. Não está claro. Não ainda. E não
será com silêncio — fingindo que nada há — que o ministro esclarecerá que não
violou o Código de Conduta da Administração Federal. E há também a Lei de
Conflito de Interesses.
Falta transparência. A margem para que um
ministro — tanto mais o da Economia — mantenha, sob seu controle direto, uma
offshore é estreitíssima. Terá alguma decisão do ministro beneficiado quem
mantém investimentos em offshores sediadas em paraísos fiscais? Por que não
moveu a grana, por exemplo, para um blind
trust? Ou fez isso, colocando os recursos aos cuidados de terceiros
sobre os quais não tem influência? Fez? Guedes precisa falar.
São três — segundo os documentos divulgados
nos Pandora Papers —
os ministros da Economia com dinheiros em offshores: os de Cazaquistão, Paquistão
e Gana. Não terá sido de propósito.
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