terça-feira, 5 de outubro de 2021

Luiz Gonzaga Belluzzo* - O pensamento (conservador) antiliberal

Valor Econômico

É assustadora a indigência cultural dos que se vêem acima dos cidadãos livres e iguais em sua diversidade

Instigado (ou provocado?) pelo avanço do pensamento conservador no Brasil e no mundo, cuidei de me entregar à releitura do livro de Karl Mannheim sobre o tema. “O Pensamento Conservador” é mais uma obra que enriquece os estudos do grande sociólogo, considerado o patrono da sociologia do conhecimento. Os leitores devem saber que ele escreveu um livro fundador - “Ideologia e Utopia” - para o desvendamento das raízes sociais e culturais do pensamento nos mundos da modernidade.

Mannheim morreu em 1947 aos 55 anos, na aurora do período mais glorioso e igualitário do capitalismo na Europa e nos Estados Unidos. Entre outras obras, escreveu os clássicos “Ideologia e Utopia” e “Ensaios Sobre a Sociologia da Cultura”. No livro “Liberdade, Poder e Planejamento Democrático”, publicado postumamente, cuidou do papel da educação no fortalecimento das democracias que acordavam dos pesadelos totalitários dos anos 1930.

Mannheim acolhe a ideia de Ortega y Gasset sobre o homem educado: aquele que se distingue pelo conhecimento das filosofias que regem sua época. Isso deveria ser complementado, diz ele, por um conhecimento dos fatos que permitam a todos formar ideias sólidas acerca do lugar do homem na natureza e na sociedade. Cabe à educação examinar os problemas de nossa sociedade, especialmente aqueles relacionados com a vida democrática. Uma vez tratadas essas questões fundamentais para o homem moderno, o estudante vai encontrar o lugar adequado para a boa formação profissional.

Ainda no livro “Liberdade, Poder e Planejamento Democrático”, Mannheim escreveu: “... não devemos restringir o nosso conceito de poder ao poder político. Trataremos do poder econômico e administrativo, assim como do poder de persuasão que se manifesta através da religião, da educação e dos meios de comunicação de massa, tais como a imprensa, o cinema e a radiodifusão”. Para Mannheim, deve-se temer menos os governos, que podemos controlar e substituir, e muito mais os poderes que exercem sua influência no “interior” das sociedades.

Uma das marcas registradas do pensamento conservador, o novo e o velho, é a convicção da bondade natural do indivíduo criado na família. Só a família torna o indivíduo capaz de discernir entre o justo e o injusto, o certo e o errado. A sociedade e as instituições, ao contrário, são corruptas e corruptoras.

Não são outros os fundamentos da ideologia da direita brasileira, como ficou demonstrado no discurso do depoente Otávio Fakhoury na CPI da covid. Atolados no neopentecostalíssimo da grana, do desamparo e do ressentimento, esses fiéis, ricos ou pobres, estão convencidos da excepcionalidade de suas virtudes e de suas crenças. No universo do conservadorismo contemporâneo, não só no Brasil, as instituições construídas ao longo da história das sociedades, sobretudo o Estado Moderno, com suas garantias jurídicas e instâncias de controle da violência, são consideradas negacionistas das liberdades. Suas leis ambíguas e seus métodos de punição são considerados insuficientemente rigorosos pelos fanáticos da virtude auto alegada.

Para eles, o formalismo da lei transforma a Justiça numa farsa, num procedimento burocrático e ineficaz. Não por acaso, está bem esculpida nos corações e nas mentes dos “homens bons e virtuosos” a figura do vingador, aquele destemido que se desembaraça das limitações dessas instituições corruptas e corruptoras para se dedicar à limpeza do país. A sociedade está suja, contaminada pelo vírus da tolerância. Só o herói solitário pode salvá-la, consultando sua consciência, recuperando, portanto, a força da moral “natural”, aquela que Deus infunde no coração de cada homem.

É esse Totalitarismo da Boa-Consciência que reivindica o fechamento do Supremo Tribunal Federal.

Nos últimos anos, os “homens bons” não se cansaram de disseminar, em seus tuites e congêneres, as consignas que moveram homenzinhos que se exibem na Avenida Paulista: “direitos humanos só para os humanos direitos”. Nas manifestações dos moralistas transcendentais vejo a autoconvocação dos soi-disant iluminados para substituir a onisciência divina e, nessa condição, desferir sentenças irrecorríveis, como as desferidas pelos juízes do Juízo Final, em contraposição aos humanos, os pobres-diabos que se debatem para sobreviver aos ditames da falibilidade e da incerteza.

No estágio atual da sociedade de massas, o controle social despótico dispensa a obviedade dos dólmãs, dos coturnos ou da cadeira do dragão. O totalitarismo do Terceiro Milênio não usa coturnos nem câmaras de gás. Usa a “informação” que não pensa em si mesma. O propósito da manipulação e da espetacularização disparadas nas redes sociais é tornar os indivíduos incapazes de compreender a natureza perversa da frenética guerra de fatos e versões “construídas” sob o acicate da concorrência para alcançar o “fundo do poço”.

As redes sociais, onde as ideias e as opiniões deveriam trafegar livremente, se transformaram num espaço policialesco em que a crítica é substituída pela vigilância. A vigilância exige convicções esféricas, maciças, impenetráveis, perfeitas. A vigilância deve adquirir aquela solidez própria da turba enfurecida, disposta ao linchamento.

Seria uma descortesia dizer aos conservadores de passeata que desperdiço vela com defunto de segunda. Para não descumprir regras de civilidade, teimo em repetir aos ouvidos de quem quiser escutar: a sociabilidade moderna se move entre a inevitável pertinência a uma cultura produzida pela história e a pluralidade dos indivíduos “livres”. A história dessas sociedades “produziu” o mercado, a sociedade civil, o Estado Moderno, suas liberdades e seus interesses.

Essa forma de sociabilidade, reivindicada pelo liberalismo político, rejeita a submissão dos indivíduos livres a transcendências religiosas, moralistas e midiáticas. É assustadora a indigência cultural dos que pretendem se colocar "fora" das misérias do mundo da vida, acima do penoso exercício de compartilhar a razão com os demais cidadãos livres e iguais em sua diversidade.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp

 

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