Valor Econômico
É assustadora a indigência cultural dos que
se vêem acima dos cidadãos livres e iguais em sua diversidade
Instigado (ou provocado?) pelo avanço do
pensamento conservador no Brasil e no mundo, cuidei de me entregar à releitura
do livro de Karl Mannheim sobre o tema. “O Pensamento Conservador” é mais uma
obra que enriquece os estudos do grande sociólogo, considerado o patrono da
sociologia do conhecimento. Os leitores devem saber que ele escreveu um livro
fundador - “Ideologia e Utopia” - para o desvendamento das raízes sociais e
culturais do pensamento nos mundos da modernidade.
Mannheim morreu em 1947 aos 55 anos, na
aurora do período mais glorioso e igualitário do capitalismo na Europa e nos
Estados Unidos. Entre outras obras, escreveu os clássicos “Ideologia e Utopia”
e “Ensaios Sobre a Sociologia da Cultura”. No livro “Liberdade, Poder e
Planejamento Democrático”, publicado postumamente, cuidou do papel da educação
no fortalecimento das democracias que acordavam dos pesadelos totalitários dos
anos 1930.
Mannheim acolhe a ideia de Ortega y Gasset
sobre o homem educado: aquele que se distingue pelo conhecimento das filosofias
que regem sua época. Isso deveria ser complementado, diz ele, por um
conhecimento dos fatos que permitam a todos formar ideias sólidas acerca do
lugar do homem na natureza e na sociedade. Cabe à educação examinar os
problemas de nossa sociedade, especialmente aqueles relacionados com a vida
democrática. Uma vez tratadas essas questões fundamentais para o homem moderno,
o estudante vai encontrar o lugar adequado para a boa formação profissional.
Ainda no livro “Liberdade, Poder e Planejamento Democrático”, Mannheim escreveu: “... não devemos restringir o nosso conceito de poder ao poder político. Trataremos do poder econômico e administrativo, assim como do poder de persuasão que se manifesta através da religião, da educação e dos meios de comunicação de massa, tais como a imprensa, o cinema e a radiodifusão”. Para Mannheim, deve-se temer menos os governos, que podemos controlar e substituir, e muito mais os poderes que exercem sua influência no “interior” das sociedades.
Uma das marcas registradas do pensamento
conservador, o novo e o velho, é a convicção da bondade natural do indivíduo
criado na família. Só a família torna o indivíduo capaz de discernir entre o
justo e o injusto, o certo e o errado. A sociedade e as instituições, ao
contrário, são corruptas e corruptoras.
Não são outros os fundamentos da ideologia
da direita brasileira, como ficou demonstrado no discurso do depoente Otávio
Fakhoury na CPI da covid. Atolados no neopentecostalíssimo da grana, do
desamparo e do ressentimento, esses fiéis, ricos ou pobres, estão convencidos
da excepcionalidade de suas virtudes e de suas crenças. No universo do
conservadorismo contemporâneo, não só no Brasil, as instituições construídas ao
longo da história das sociedades, sobretudo o Estado Moderno, com suas
garantias jurídicas e instâncias de controle da violência, são consideradas
negacionistas das liberdades. Suas leis ambíguas e seus métodos de punição são
considerados insuficientemente rigorosos pelos fanáticos da virtude auto
alegada.
Para eles, o formalismo da lei transforma a
Justiça numa farsa, num procedimento burocrático e ineficaz. Não por acaso,
está bem esculpida nos corações e nas mentes dos “homens bons e virtuosos” a figura
do vingador, aquele destemido que se desembaraça das limitações dessas
instituições corruptas e corruptoras para se dedicar à limpeza do país. A
sociedade está suja, contaminada pelo vírus da tolerância. Só o herói solitário
pode salvá-la, consultando sua consciência, recuperando, portanto, a força da
moral “natural”, aquela que Deus infunde no coração de cada homem.
É esse Totalitarismo da Boa-Consciência que
reivindica o fechamento do Supremo Tribunal Federal.
Nos últimos anos, os “homens bons” não se
cansaram de disseminar, em seus tuites e congêneres, as consignas que moveram
homenzinhos que se exibem na Avenida Paulista: “direitos humanos só para os
humanos direitos”. Nas manifestações dos moralistas transcendentais vejo a
autoconvocação dos soi-disant iluminados para substituir a onisciência divina
e, nessa condição, desferir sentenças irrecorríveis, como as desferidas pelos
juízes do Juízo Final, em contraposição aos humanos, os pobres-diabos que se
debatem para sobreviver aos ditames da falibilidade e da incerteza.
No estágio atual da sociedade de massas, o
controle social despótico dispensa a obviedade dos dólmãs, dos coturnos ou da
cadeira do dragão. O totalitarismo do Terceiro Milênio não usa coturnos nem
câmaras de gás. Usa a “informação” que não pensa em si mesma. O propósito da
manipulação e da espetacularização disparadas nas redes sociais é tornar os
indivíduos incapazes de compreender a natureza perversa da frenética guerra de
fatos e versões “construídas” sob o acicate da concorrência para alcançar o
“fundo do poço”.
As redes sociais, onde as ideias e as
opiniões deveriam trafegar livremente, se transformaram num espaço policialesco
em que a crítica é substituída pela vigilância. A vigilância exige convicções
esféricas, maciças, impenetráveis, perfeitas. A vigilância deve adquirir aquela
solidez própria da turba enfurecida, disposta ao linchamento.
Seria uma descortesia dizer aos
conservadores de passeata que desperdiço vela com defunto de segunda. Para não
descumprir regras de civilidade, teimo em repetir aos ouvidos de quem quiser
escutar: a sociabilidade moderna se move entre a inevitável pertinência a uma
cultura produzida pela história e a pluralidade dos indivíduos “livres”. A
história dessas sociedades “produziu” o mercado, a sociedade civil, o Estado
Moderno, suas liberdades e seus interesses.
Essa forma de sociabilidade, reivindicada
pelo liberalismo político, rejeita a submissão dos indivíduos livres a
transcendências religiosas, moralistas e midiáticas. É assustadora a indigência
cultural dos que pretendem se colocar "fora" das misérias do mundo da
vida, acima do penoso exercício de compartilhar a razão com os demais cidadãos
livres e iguais em sua diversidade.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é
professor titular do Instituto de Economia da Unicamp
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