Folha de S. Paulo
Redes sociais nos deixaram mais do que
nunca à mercê de podres poderes
Enquanto escrevo esta coluna, as
redes e serviços do grupo Facebook (o próprio Face, o Instagram e o WhatsApp)
voltam aos poucos a funcionar, após quase seis horas fora do ar.
Parece que a coisa foi grave. A queda
simultânea das três plataformas é mais um alerta do perigo da concentração de
mercado. Se Instagram,
Facebook e Whatsapp não fossem do mesmo grupo, não teriam todos caído
ao mesmo tempo. Mark Zuckerberg, assim como outros donos de redes e
plataformas, tem poder demais nas mãos; e, quando falha, nos deixa na mão.
“Anjos Tronchos” é o nome que Caetano Veloso dá aos chefões do Vale do Silício em sua nova canção, cujos versos expõem diversas facetas do impacto das redes sociais no mundo, nem sempre para o bem. Explorando a fragilidade de nossos neurônios com o poder dos algoritmos, somos viciados e comercializados para o acúmulo de seus “mi, bi, trilhões”.
E nisso a sociedade se transforma. A
Primavera Árabe —citada na música— é o primeiro grande evento em que as redes
tiveram papel determinante.
E todo aquele idealismo inicial desembocou
no horror, na medida em que os jovens idealistas, tendo derrubado as velhas
ditaduras, agora optavam pelo islamismo político e pela guerra sectária. E não
foi só no Oriente. Entre nós, as redes serviram de trampolim para “palhaços
líderes”, “munidos de controles totais”.
O mais desesperador, contudo, é pensar que,
embora poderosos demais, nem mesmo esses anjos consigam controlar
os processos sociais deslanchados pelas redes que criaram.
As fake news de Trump e Bolsonaro, as
loucuras antivacina, as teorias da conspiração delirantes que se tornam cada
dia mais comuns; os algoritmos perversos das redes podem até ter ajudado a
impulsionar tudo isso, mas o fato é que não foram eles os motores.
O Facebook inclusive investiu em ações para
reduzir o avanço de notícias falsas e desinformação na pandemia, mas constatou
em pesquisa interna que o resultado deixou a desejar. Quem leva a
desinformação, as fake news e o ódio adiante são os próprios usuários.
A prova disso é o WhatsApp, veículo
preferencial de desinformantes, e no qual nenhum algoritmo determina o que
chega ou não até você, e sim a sua decisão de manter contatos e grupos.
O fim dos limites à comunicação destroçou
nossa capacidade social de distinguir o verdadeiro e o falso: se cada um
escolhe sua verdade, ela deixa de existir. “Que nuvem, se nem espaço há/ Nem
tempo, nem sim nem não/ Sim: nem não”.
E esse é o dilema para Zuckerberg e demais
anjos tronchos: limitar o mau uso das redes é barrar o uso que as pessoas
efetivamente querem fazer delas.
E, se ele optar por isso —isto é, se em
nome da informação responsável ele limitar as escolhas de seus consumidores—,
ele a deixará menos atrativa para os usuários. O Facebook já tem de lidar com
sua incapacidade de atrair usuários mais jovens. A percepção de que é uma rede
social “de velho” pegou forte. E corre o risco de perder também a direita, que
busca depender menos do WhatsApp e migra para o Telegram (Bolsonaro
incluso).
As redes abriram oportunidades inéditas e
francamente revolucionárias para o indivíduo, seja para estabelecer conexões
(“Ah, morena bela, estás aqui"), seja no consumo de cultura (ouvir
“Shoenberg, Webern, Cage”), seja em sua produção (“Miss Eilish faz tudo do
quarto com o irmão”). Coletivamente, contudo, nos deixaram mais do que nunca à
mercê de podres poderes.
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