O Globo
Em Brasília, alguns termos adquirem
significado ímpar. Um deles é urgência. O outro é garantismo. O dicionário diz
que uma coisa é urgente quando não pode ser retardada, é imprescindível,
indispensável.
Garantismo é o nome que o Direito dá à
defesa dos instrumentos legais que protegem os cidadãos de eventuais abusos do
Estado. O primeiro “teste do Aurélio” ocorreu quando a Câmara dos Deputados
aprovou uma nova Lei de Improbidade Administrativa, desfigurando a que estava
em vigor.
Na sessão que já ficou na História, o texto
que vinha sendo discutido havia meses com a sociedade foi substituído por outro
e votado em oito minutos pelo plenário, sem qualquer discussão extra. A versão
final foi aprovada no Senado há duas semanas e tramitou num ritmo igualmente
veloz.
A nova lei diz que, para punir um gestor público por um malfeito, seria necessário comprovar o dolo, a intenção de cometer uma irregularidade. Dependendo do nível hierárquico da autoridade envolvida — digamos, um presidente que posterga deliberadamente a compra de vacinas —, os novos critérios podem tornar essa “intenção” bem difícil de provar.
Pela nova lei, os prazos dos processos por
improbidade também prescrevem mais rápido. Seus defensores argumentam que as
mudanças eram necessárias para impedir que os bons gestores se afastassem de
funções públicas, já que a antiga lei vinha sendo usada pelo Ministério Público
(MP) para perseguir a classe política.
O sucesso da primeira tentativa levou a uma
nova ofensiva, desta vez contra a independência do próprio MP. A proposta que
tramita a toque de caixa é a mudança da Constituição que aumenta o poder do
Congresso e do procurador-geral da República sobre a atuação de procuradores e promotores.
Seu teor é tão flagrante que ela já ganhou
o apelido de “PEC da Vingança”, numa referência ao revide dos políticos contra
a Lava-Jato. O texto do deputado Paulo Teixeira (PT-SP) estava em análise numa
comissão especial quando, sem aviso, recebeu emendas do relator, Paulo
Magalhães (PSD-BA), e entrou na pauta da Câmara para votação imediata no
plenário.
A nova regra altera profundamente o
funcionamento dos dois principais órgãos de fiscalização e regulação do
Ministério Público. No caso do primeiro, o Conselho Nacional do Ministério
Público (CNMP), que conduz todos os processos disciplinares, aumenta de dois
para quatro a quantidade de conselheiros indicados pelo Congresso — que ganha
ainda o poder de indicar justamente o corregedor. Além disso, a PEC autoriza o
conselho a modificar ou revogar medidas tomadas por procuradores e promotores
do Brasil inteiro.
O texto também muda a composição do
Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) e dos conselhos estaduais, que
regulam as questões funcionais e de procedimento da instituição.
Hoje, com exceção do presidente e do
vice-presidente, todos os membros são eleitos pela categoria. Se a PEC for
aprovada, dois terços passarão a ser escolhidos pelo chefe do MP, seja ele o
procurador-geral da República, sejam os procuradores-gerais dos estados.
Se essa configuração estivesse valendo
hoje, os membros do CSMP certamente não teriam cobrado do procurador-geral da
República, Augusto Aras, uma posição diante dos ataques de Jair Bolsonaro ao
TSE ou à urna eletrônica, nem teriam feito nada para pressionar Aras a atuar
para que Bolsonaro tomasse medidas para garantir a compra de vacinas. Afinal,
quase todos teriam sido escolhidos pelo próprio Aras.
Não que o MP seja uma instituição
irretocável, ou que não seja necessário avaliar os erros e abusos cometidos
pela Lava-Jato. O debate é importante para o fortalecimento da democracia.
Mas, quando se trata de mudanças profundas
com tamanha ligeireza, fica parecendo que, para os parlamentares, tutelar os
procuradores e promotores é mais urgente que encontrar uma nova configuração do
Bolsa Família ou desatar os nós da reforma tributária.
A pressa é tanta que os legisladores não
previram nenhuma medida destinada a garantir que o procurador-geral da
República seja obrigado a cumprir sua função — e investigue a real
responsabilidade de Bolsonaro pela negligência no combate à pandemia, pela
disseminação de fake news ou pelos ataques ao Supremo Tribunal Federal.
Os abusos do Estado contra os cidadãos
comuns, nesse caso, vão passando incólumes. Pelo jeito, no manual dos
políticos, o garantismo que vale mesmo é aquele que funciona em causa própria.
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