Folha de S. Paulo
Debate sobre o que substituirá o auxílio
emergencial não pode se limitar ao destino do Bolsa Família
Impiedosa lente de aumento, a pandemia
escancarou, agravada, a tragédia
social do país. Segundo o Centro de Políticas Sociais da FGV (Fundação
Getúlio Vargas), a atual renda média dos brasileiros caiu 9,4% a contar do
final de 2019 —quando era já significativamente menor do que em 2014. Claro que
nem todos perderam por igual: o tombo na metade mais pobre da população bateu
em 21,5%, o triplo do que no décimo mais rico. Com isso, disparou o desnível de
renda medido pelo índice de Gini --que varia de 0 (igualdade absoluta) a 1 (total
desigualdade).
Estatísticas são uma forma fria de tratar do desastre humano revelado na feiúra das nossas cidades e na degradação de suas áreas centrais onde circula e vive —em número crescente— o povo da base da escada. O horror embrutece a todos: os que ele engolfa e os que dele podem se proteger ou até se beneficiar. Sem falar que a catástrofe torna irremediavelmente frágeis os alicerces sociais da democracia.
Eis por que o debate sobre o que
substituirá o auxílio emergencial criado pelo Congresso não pode se limitar ao
destino do Bolsa Família --além de mudar o seu nome, como quer o governo--,
dadas as inescapáveis restrições fiscais. O porte do problema requer definição
mais ampla do modelo de proteção social desejável: ou seja, as condições
mínimas de existência que se quer garantir a todos os que aqui habitam, bem
como os programas e as fontes estáveis de recursos que o materializem.
No Brasil, além da vexaminosa pobreza, é
demasiado grande o contingente daqueles que, por estarem já com a água pelo
pescoço, podem nela submergir de vez ao menor solavanco da economia. Nessa
situação-limite, programas de transferência de renda serão sempre uma base
extensa e indispensável de qualquer sistema de proteção social que valha o
nome. Seu tamanho não pode flutuar ao sabor das restrições fiscais: exige
fontes definidas de financiamento, portas de saída e ainda flexibilidade para
crescer quando as crises ou as mutações do mercado de trabalho tirarem das
pessoas os meios de subsistir com o seu labor.
Está em curso um importante debate sobre
diferentes modelos de programas de transferência de renda. Dele participam
defensores da renda mínima universal, bem assim adeptos de engenhosa combinação
de transferências focalizadas com seguro. Esses modelos inevitavelmente
alimentarão as agendas das oposições. Sua força será tanto maior quanto mais
seu enfoque estiver à altura de enfrentar o megadesafio de imaginá-los como
base mínima de políticas capazes engendrar uma sociedade algo menos indecente
do que a de hoje.
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