quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Adriana Fernandes - Fome de emendas

O Estado de S. Paulo

Fome por mais emendas parlamentares retarda solução para novo programa social

A fome de deputados e senadores por emendas parlamentares contrasta com a fome real dos brasileiros. Cerca de 20 milhões de pessoas passam fome no Brasil, mas Brasília vive o Dia da Marmota repetindo o que aconteceu nessa mesma época no ano passado.

Durante o processo de retomada da economia depois do abalo da pandemia da covid-19, governo e aliados no Congresso decidiram lançar, no segundo semestre de 2020, as bases de um novo programa social com a marca Bolsonaro, o famigerado Renda Brasil.

Em coro, os governistas cantaram a necessidade de desenhar um novo programa robusto para enfrentar o aumento da miséria que chegou junto com a pandemia.

Nada aconteceu a não ser uma briga por emendas parlamentares. O ano de 2020 terminou junto com o auxílio emergencial. A pandemia se agravou, e o benefício foi prorrogado em escala menor a partir de abril desse ano, com cortes mensais dos beneficiários sem transparência do Ministério da Cidadania, como denuncia a Rede Brasileira de Renda Básica.

Desde o início da nova rodada, em abril, o governo não divulga as informações que poderiam revelar o contingente de pessoas que vem sendo retirado do programa. Dados essenciais, segundo a diretora da Rede, Paola Carvalho, para preparar a transição do auxílio emergencial para o novo programa social.

Chegamos agora ao último trimestre de 2021 no mesmo imbróglio e numa queda de braço da equipe econômica com a ala política pelo espaço no Orçamento. O programa Renda Brasil virou Auxílio Brasil numa medida provisória enviada no dia 9 de agosto, e que não define valores para o novo programa pulverizado em vários tipos de benefícios. Políticos não lideraram uma discussão ampla para melhorar o novo programa. Concentraram-se em outras pautas do retrocesso.

Já se vão dois meses desde o envio da proposta sem ter nada definido e com a repetição dos discursos políticos de que a prioridade é o programa social do governo.

A verdade, porém, é outra. É a fome por mais emendas parlamentares que está retardando a solução. A ganância de hoje é ainda maior na véspera do ano eleitoral.

Já não basta mais o espaço de quase R$ 50 bilhões aberto para novos gastos em 2022 que será obtido com a aprovação da PEC dos precatórios, proposta que adia o pagamento das despesas com sentenças judiciais.

Com o impacto da inflação mais alta nas despesas obrigatórias consumindo quase metade dos R$ 50 bilhões e com a eleição pela frente, a solução política encontrada é dar um drible na regra fiscal para prorrogar o auxílio emergencial com um tipo de crédito orçamentário que só pode ser usado em caso de imprevisibilidade.

Como esse crédito não está sujeito ao teto de gastos, sobrará mais espaço para emendas e todo tipo de obra eleitoreira que pulveriza o ínfimo espaço para investimentos públicos realmente relevantes e estruturantes.

O Ministério da Economia não aceita esse caminho. A queda de braço se intensifica, ao mesmo tempo em que se aproxima o fim do auxílio, no dia 31 de outubro.

Enquanto o mundo político alardeia empatia e fala de urgência diante do quadro dramático vivido pela população de baixa renda, as negociações de bastidores vêm para confundir mais com o festival de propostas para driblar as regras fiscais.

Estão todos tentando ganhar tempo para chegar o dia do fim do auxílio emergencial e emplacar a prorrogação, a saída mais fácil e que mostra o tamanho da incompetência das autoridades e lideranças políticas que tiveram mais de ano para decidir. É a aposta mais uma vez no improviso, no mal feito.

A mobilização nos próximos dias por uma solução urgente e eficiente precisa ser ainda maior do que a organizada depois do veto do presidente Bolsonaro ao programa de distribuição de absorventes para mulheres pobres.

“Quem se permite negociar a fome de milhões de pessoas já expõe, de longe, um caráter absolutamente indigesto”, resume a socióloga e conhecedora do Bolsa Família Leticia Bartholo, ao falar do quadro político que rege a indefinição do programa. Não foi por falta de aviso. Com a fome não dá para negociar. Contagem regressiva. Faltam 18 dias.

 

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