Valor Econômico
Frase de Nelson Rodrigues se aplica à
decadência fiscal do Rio
Frasista incorrigível, o jornalista,
escritor, dramaturgo e torcedor fanático do Fluminense Nelson Rodrigues disse
certa vez que “o subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”. A
inspiração do chiste, evidentemente, é a capacidade permanente do país a que
chamamos de Brasil de “construir” o próprio fracasso. Como definiu Roberto
Campos, outro célebre autor de ditos espirituosos, “o Brasil não perde a
oportunidade de perder oportunidades”.
Quem testemunhou a primeira década deste século deve lembrar-se de que 2010 foi o ápice do último bom momento vivido pela economia brasileira. Era o ano derradeiro do segundo mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que, ao assumir o posto em janeiro de 2003, rasgou a cartilha de seu partido e adotou e aperfeiçoou o arcabouço macroeconômico herdado de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso.
Petistas costumam cuspir no prato em que
comem, mas não dá para mudar a história. Praticamente tudo o que Lula fez foi
na contramão da opinião da maioria absoluta dos quadros do partido,
especialmente, dos intelectuais da USP, que não demoraram para romper
publicamente com o presidente. O que os incomodou tanto?
Quando Lula tomou posse, a inflação estava
em dois dígitos (12,5% em 2002 e 17% nos 12 meses acumulados até abril de
2003); o dólar era cotado a mais de R$ 4, o maior valor desde o início do Plano
Real, reflexo da fuga de capitais que o país enfrentava porque investidores
temiam a gestão do petista; a economia vivia nas contas públicas e externas o
que os economistas chamam de “déficits gêmeos”, a perigosa combinação.
O que fez Lula? Cortou gastos drasticamente
no primeiro ano de mandato e, assim, elevou a meta de superávit primário das
contas públicas acima do nível que o governo FHC vinha gerando; deu autonomia
técnica ao Banco Central (BC) para aumentar juros e, portanto, derrubar a
inflação; enviou ao Congresso, no terceiro mês de mandato, proposta de emenda
constitucional para igualar as condições de aposentadoria do funcionalismo
público às dos trabalhadores do setor privado (pagos pelo INSS) e aprovar a
contribuição dos inativos à previdência, vitória que FHC não obteve menos de
cinco anos antes; acumulou reservas cambiais e antecipou o pagamento da dívida
do país com o FMI.
Haverá eleição em 2022 e o país está às
voltas, novamente, com situação fiscal delicada, assanhamento da inflação e,
portanto, das taxas de juros e da taxa de câmbio, e avistando no horizonte a
chegada de forte recessão - se confirmada, a segunda em sete anos. O debate, se
for honesto, não pode, à la Stalin, apagar personagens de fotografias.
Deu tudo certo e as bons resultados logo
apareceram. Entre 2006 e 2011, o Brasil cresceu, em média, 4,5% ao ano.
Retirando-se da conta o ano de 2009, quando a economia mundial vivia a ressaca da
maior crise financeira da história, desde 1929, e o PIB da Ilha de Vera Cruz
teve recessão técnica (contração da atividade em apenas dois trimestres,
seguida de rápida e vigorosa recuperação), a média de crescimento do período
mencionado foi de 5,7%.
O resto é história. Popularíssimo, Lula
escolheu Dilma Rousseff para disputar a sucessão, e o fez sem consultar
absolutamente ninguém no PT. Em 2010, o PIB cresceu 7,5%, maior taxa de
expansão em 24 anos. O Brasil era sinônimo de alegria, e desta vez com uma
notável (embora, ingênua e falsa, como logo o tempo revelou) diferença: todos
achávamos que, tendo chegado ali, não haveria mais recuos nem retrocessos de
qualquer espécie.
Esqueceram de combinar com Dilma, que
enganou a Lula - sim, o traiu - e caiu nos braços da turma mais à esquerda do
PT, que, mesmo com a ruína de sua gestão, identificam-se mais com ela do que
com o fundador do partido. Numa cena de sincericídio revelada pelo Valor durante a campanha
da petista, o ex-ministro José Dirceu disse o seguinte durante evento fechado
com sindicalistas na Bahia: “Agora, nós vamos fazer o nosso goverrrno”, bradou,
dobrando com vontade o ‘r’ da palavra e deixando fluir o sotaque que carrega de
sua cidade natal, Passa Quatro (MG). Dirceu estava certo. Dilma fez o governo
que o PT sempre quis fazer.
O otimismo se espalhou pelos Estados.
Depois de passar por forte ajuste entre 2007 e 2011, durante o primeiro mandato
do governador Sérgio Cabral, o Estado do Rio foi o primeiro a ganhar o selo de
bom pagador, o chamado “grau de investimento” concedido pelas agências de
classificação de risco. A União foi premiada em abril de 2008 com esse selo e o
governo fluminense, em 2010.
Declarou a S&P: “O Estado do Rio de
Janeiro se mantém apoiado por uma economia forte e diversificada, com um PIB
per capita estimado em cerca de 25% acima da média do Brasil. Os campos do
pré-sal vão continuar dando suporte à economia no médio prazo”. O então
secretário de Fazenda, Joaquim Levy, reagiu dessa maneira: “O ‘investment
grade’ dá ao Rio condições muito mais favoráveis para conduzir suas políticas
de investimento, que preveem grandes projetos de infraestrutura, inclusive para
os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo”.
“O Rio de Janeiro mostrava que tinha uma
gestão fiscal séria e responsável. A arrecadação do Estado crescia a taxas
médias de 7% reais desde 2008. O número de novas empresas registradas no estado
que em 2003 fora de apenas 27,7 mil atingira, em 2010, o valor recorde de 50,4
mil (mais de 80% maior). A dívida do Estado que em 2002 chegara a 242% de sua
Receita Corrente Líquida (RCL) havia baixado sistematicamente. Os superávits
primários eram expressivos e a administração fiscal e tributária ia de vento em
popa”, recorda, no primeiro capítulo do livro “O Destino dos Estados
Brasileiros: Liderança, Responsabilidade Fiscal e Políticas Públicas (Editora
Lux, 2021)”, o economista Paulo Tafner, que testemunhou a “ascensão e queda” da
saúde fiscal do Estado Rio. “O grau de investimento conferido ao Estado era um
atestado de responsabilidade fiscal. Em 2011, o Tesouro estadual, conquistou,
de forma inédita, a Certificação ISO 9001. Obras eram realizadas em todo o
Estado e o metrô se expandia como jamais ocorrera antes”.
Organizado pelo incansável Fábio Giambiagi (desde 1998, ele escreveu e organizou quase 40 livros!) em parceria com os colegas Guilherme Tinoco e Victor Pina Dias, a publicação é inédita ao tratar da situação fiscal de cada Estado. Dedicado a Ribamar Oliveira, o Riba, que todos perdemos para a covid-19 em junho deste ano, trata-se de contribuição valiosíssima ao debate nacional.
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