EDITORIAIS
Senado precisa barrar a PEC dos Precatórios
O Globo
É dever do Senado rejeitar a Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios, aprovada em segundo turno na
Câmara. O texto, que recebeu o voto de 323 deputados, rompe o teto de gastos
(única âncora fiscal que resta ao país), desorganiza as contas públicas,
alimenta ainda mais a inflação (que já bate nos 11% em 12 meses), põe freios no
crescimento, reduz a retomada do emprego e da renda, prejudicando de forma mais
aguda os mais pobres — em tese, pretexto do governo para promover a lambança.
A defesa da implosão do teto se baseia numa
premissa mentirosa. Partidários da PEC afirmam, de modo maroto, que ela é
necessária para viabilizar o Auxílio Brasil, o substituto do Bolsa Família.
Balela. Mesmo abstraindo os erros cometidos na formatação do programa e seu
caráter eleitoreiro, não seria tão difícil assim, num Orçamento de R$ 1,5
trilhão, encontrar recursos para bancar os quase R$ 50 bilhões que faltam para
pagar os R$ 400 a 17 milhões de beneficiários. O difícil é fazer isso de forma
fiscalmente responsável num ambiente político tomado de assalto por interesses
paroquiais.
Qualquer efeito positivo do Auxílio Brasil — um programa social confuso, de eficácia questionável e com prazo de validade — será eclipsado pela crise na economia que virá em seguida. Não se trata de ajudar os miseráveis, mas de garantir dinheiro para gastar antes das eleições do ano que vem, mesmo sabendo que os mais pobres serão os mais prejudicados no médio prazo. Com a PEC, o Parlamento opta pelo caminho mais prejudicial ao país. Nas palavras do economista Marcos Lisboa em entrevista ao GLOBO, “um trem da alegria de distribuição de recursos públicos”.
O principal mecanismo para garantir a farra
eleitoreira tem sido até agora o “orçamento secreto”, cujo pagamento foi
suspenso por uma decisão do Supremo. Foi a decisão correta, mas não atinge o
problema essencial. Não fosse a famigerada emenda do relator, na certa os
parlamentares encontrariam outro esquema para barganhar seu apoio ao governo.
Num país com tamanho grau de fragmentação partidária, historicamente o
Executivo tem dependido de acertos pouco republicanos para garantir apoio no
Parlamento.
Nesse capítulo, é verdade, o atual
Congresso tem se esmerado na tentativa de reduzir a transparência na alocação
das verbas, como se os recursos públicos devessem estar à mercê dos grupos que
ocupam o poder. Mas o problema não se esgota aí. Tanto no Auxílio Brasil quanto
nos projetos financiados pelas emendas do relator, falta o mesmo ingrediente:
políticas públicas determinadas por critérios técnicos referendados pelo
conhecimento mais avançado, sujeitas a um debate robusto no Parlamento,
financiadas de modo fiscalmente responsável, com toda a transparência.
Recobrar a transparência e a
responsabilidade fiscal é essencial para poder discutir, tecnicamente, a melhor
forma de gastar o dinheiro público na solução de problemas crônicos como a
pobreza. O retrocesso no atual governo, regido pela parceria do presidente Jair
Bolsonaro com o Centrão, dá mais uma prova de que a culpa pelo nosso atraso é
só nossa. Em vez de políticas sociais consistentes ou reformas em prol do
ambiente de negócios, sabota-se o futuro. No caso específico da PEC, o Senado
ainda tem a chance de reparar o erro. Seria um bom recomeço.
Anvisa deve ter independência para decidir
sobre vacinação em crianças
O Globo
São inaceitáveis as ameaças apócrifas
dirigidas a diretores e servidores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) contra a liberação da vacinação anti-Covid-19 para crianças — que
ainda nem é objeto de análise. De concreto, existe o anúncio de que a Pfizer
submeterá à Anvisa o pedido para aplicar sua vacina em crianças de 5 a 11 anos.
Na terça-feira, houve uma reunião preliminar entre técnicos da agência e
representantes da farmacêutica. O Instituto Butantan também informou que
pleiteará o uso da CoronaVac em crianças e adolescentes de 3 a 17 anos.
Na semana passada, a Polícia Federal abriu
inquérito para investigar as ameaças. A gravidade do fato não pode ser
ignorada. Como mostrou reportagem do GLOBO, numa das mensagens o autor dizia:
“Não aprovem vacinas para crianças menores de 12 anos ou o bixo (sic) vai
pegar. Isso não é uma ameaça, é uma promessa! Não mexam com nossas crianças, ou
iremos atrás de cada um de vocês (...). A resposta será fogo e fúria, e não
irão (sic) escapar ninguém”. Dias depois, em nova postagem, dizia-se que a
intenção não era matar, mas “infernizar a vida de cada um na Anvisa”, descobrir
quem são, onde moram, que locais frequentam, “humilhar e xingar na rua”.
Naturalmente, as ameaças criaram um clima de apreensão e levaram o
diretor-presidente, Antonio Barra Torres, a pedir proteção policial para os
funcionários.
Pelo papel que desempenhou até agora em
mais de um ano e oito meses de pandemia, não há por que duvidar da capacidade
técnica da Anvisa para analisar os pedidos que recebe. Todas as vacinas
aplicadas no Brasil — CoronaVac, AstraZeneca, Pfizer e Janssen — foram objeto
de análises técnicas criteriosas, às vezes de forma até exagerada. A demora
para liberar certas vacinas gerou críticas, mas a agência não cedeu a pressões.
A ação das milícias negacionistas não deve
ser menosprezada. Não é fenômeno exclusivo do Brasil. Nos Estados Unidos,
Garibaldo, o inocente personagem de “Vila Sésamo” lá conhecido como “Big Bird”,
se tornou alvo de ataques só porque defendeu candidamente a vacinação contra a
Covid-19, num país onde sobram vacinas e falta disposição para se vacinar. Foi
tachado de comunista. A ignorância não tem fronteiras. No Brasil, o ímpeto
antivacina tem entre seus líderes ninguém menos que o presidente da República.
Jair Bolsonaro já disse em vídeo que a OMS não recomendava a vacinação em
crianças — pura mentira e desinformação.
A melhor resposta que a Anvisa pode dar às ameaças é fazer seu trabalho: analisar os pedidos de forma técnica, aprová-los ou rejeitá-los com argumentos sólidos. Convém dizer que a aplicação da vacina da Pfizer em crianças de 5 a 11 anos já foi autorizada pelo Centro de Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos. A aprovação por agências estrangeiras idôneas é um fator que costuma ser levado em conta pela Anvisa. A Polícia Federal também precisa fazer seu papel: investigar e punir os autores das ameaças, até para que a sandice antivacinas não prospere.
STF complica a cooptação da base de apoio
ao governo
Valor Econômico
Algum novo atalho será criado, mas a forma
de aliciamento atual foi dificultada
A aliança entre o presidente Jair Bolsonaro
e o Centrão, uma guinada radical para um político profissional exótico, que não
julgava necessário ter uma base de apoio no Congresso, foi batizada com o
dinheiro secreto das emendas do relator. Na virada de 2020, quando Arthur Lira,
presidente da Câmara e Ciro Nogueira (PP), hoje ministro da Casa Civil se
aliaram ao Planalto, descobriu-se que um esquema de compra de adesões obscuro
alimentava o cacife político (e talvez outras coisas mais) de deputados e
senadores, como revelou o jornal “O Estado de S. Paulo”. Para manter um canal
de recursos que é superior às emendas individuais e de bancadas somadas, o
Centrão e Bolsonaro patrocinaram a PEC dos Precatórios, a do calote, e o furo
no teto de gastos. O Auxílio Brasil foi o pretexto, não o motivo mais urgente.
O tiro certeiro nas emendas do relator,
desferido pelo Supremo Tribunal Federal, causa um remelexo na base governista
que, sem esses recursos, terá maior dificuldade em angariar apoio a um governo
apalermado e sem rumo. Por 8 votos a 2 (de Gilmar Mendes e Nunes Marques), o
STF deu seu aval à liminar da ministra Rosa Weber, cuja argumentação não deixou
dúvidas: as emendas paralelas ao orçamento não eram republicanas e feriam
vários princípios constitucionais, como moralidade, transparência,
impessoalidade, equanimidade, publicidade etc.
O subterfúgio das emendas do relator é tão
acintoso e discrepante de qualquer coisa parecida com o bom trato da coisa
pública que fechou caminho às tentativas da conciliação e da via intermediária
às quais alguns ministros do STF estão sempre dispostos. Os votos discordantes,
de Mendes e Marques, foram, no mínimo, esquisitos. Nunes Marques, indicado por
Bolsonaro - que anteontem disse que tinha “10% de seu coração” na Corte,
referindo-se a ele - "poderia ocasionar grave risco à execução das
políticas públicas em todo o país, sendo capaz de gerar verdadeiro caos nas
mais diversas áreas, desde saúde e educação, até infraestrutura”. Mendes foi
pelo mesmo caminho e apontou que “congelamento das fases de execução dessas
despesas se afigura dramático principalmente em setores essenciais à
população”.
As alegações são excêntricas, porque não
são do conhecimento público os patrocinadores das emendas, os receptores e os
objetivos aos quais foram destinados os recursos e nem mesmo o montante. O caminho
do dinheiro só pode ser traçado recorrendo-se à Lei de Acesso à Informação,
rota usada pelo “O Estado” para descobrir uma leva de tratores superfaturados
comprados pela Codevasf, cujos dirigentes foram indicados pelo Centrão. Há de
tudo, menos interesse público, nesse orçamento clandestino: verbas para a
prefeitura do pai de Arthur Lira em Alagoas, por exemplo, para o então
presidente do Senado, Davi Alcolumbre e mais alguns em um grupo privilegiado.
As emendas do relator, em tese mais R$ 16,8
bilhões este ano, que, junto com as demais somam algo como R$ 31 bilhões, o
furo no teto de gastos e o calote dos precatórios dizem muito sobre a qualidade
do Congresso e o nível de suas aspirações. Nesses episódios em que o interesse
público não ocupa lugar algum, partidos e alguns candidatos à terceira via se
comportaram como aqueles que trocam recursos assegurados por princípios
políticos. O PSDB, exceto deputados ligados a João Doria, cacifaram o calote,
assim como boa parte do MDB e PSD. Na questão escandalosa das emendas do
relator, perfilou-se ao lado de Lira o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco,
que desponta como presidenciável pelo PSD.
A decisão do STF atrapalhou os planos de
uma claque que, pelo apoio ao Executivo, se sobrepõe aos demais parlamentares e
forma maiorias com recursos públicos. Sempre houve a formação de maiorias via
emendas, mas o que se vê agora dista muito das barganhas usuais no cotidiano
político.
Sob a égide do Centrão, consolidava-se um
canal subterrâneo de repasses de dinheiro fácil de obter e difícil de rastrear,
rota fácil para a corrupção. A sugestão protocolar de Rosa Weber, de que
deveriam estar disponíveis ao público em plataforma pública todos os dados
essenciais referentes a essas emendas, é de bom senso e mata a malandragem. A
essência do dispositivo é seu segredo. Tornadas públicas as emendas, os
deputados se verão compelidos por interesse próprio a buscar a razão pela qual
alguns parlamentares são mais iguais que outros e têm direito a mais recursos.
Algum novo atalho será criado, mas a forma de aliciamento atual foi dificultada.
Máquina emperrada
Folha de S. Paulo
STF impõe disciplina a emendas e trava
arranjo de apoio a Bolsonaro no Congresso
Ao jogar areia no mecanismo desenvolvido
por Jair Bolsonaro e seus aliados no centrão para azeitar barganhas políticas
com recursos públicos, o Supremo Tribunal Federal criou novas dificuldades para
o governo no Congresso.
Em julgamento
concluído nesta quarta-feira (10), a maioria dos integrantes da
corte juntou-se à ministra Rosa Weber para suspender a execução das emendas
orçamentárias controladas pelo centrão e cobrar a divulgação de informações
sobre a aplicação das verbas.
Conhecidas como emendas de relator, elas se
tornaram um pilar do esquema que dá sustentação ao Planalto no Legislativo ao
separar fatia significativa do Orçamento para distribuição a aliados de acordo
com critérios opacos.
Dos R$ 16,8 bilhões reservados por tais
instrumentos na peça orçamentária deste ano, R$ 9,3 bilhões já foram
comprometidos com projetos apadrinhados pelos parlamentares governistas. Os R$
7,5 bilhões restantes foram congelados pelo Supremo.
O tribunal ainda não discutiu questões de
fundo sobre a legalidade dessas emendas, mas concluiu que, da forma como têm
sido utilizadas, elas violam princípios constitucionais que impõem publicidade
e impessoalidade ao emprego das verbas públicas.
Deve-se sempre ver com cautela uma
intervenção do Judiciário nos assuntos dos outros Poderes. Mesmo ministros que
votaram contra o bloqueio dos recursos, entretanto, apoiaram as medidas que
visam tirar das sombras os beneficiários das emendas parlamentares.
A decisão criará embaraço para os
governistas porque a falta de transparência era chave para o controle do
processo pelos líderes do centrão, que assim não precisavam respeitar critérios
que asseguram isonomia na divisão de outras fatias do Orçamento reservadas para
os parlamentares.
Quando a decisão do STF for cumprida e se
tornarem conhecidos os beneficiários das emendas de relator, será possível
conferir quem ganhou mais e o que fez com seu quinhão —e ficará difícil conter
os conflitos que decerto emergirão na própria base governista.
A fragilidade da coalizão que sustenta
Bolsonaro ficou evidente durante a votação da
emenda que permite ao governo furar o teto de gastos e dar
calote em dívidas reconhecidas pela Justiça, aprovada na terça (9) pela Câmara
dos Deputados, aos trancos e barrancos. Desmanchado o arranjo das emendas, a
instabilidade tende a aumentar.
Não foi à toa que o presidente e os líderes
do centrão protestaram contra a intervenção do STF. Nos bastidores, fala-se em
buscar meios de contornar a decisão. O espaço para manobras, contudo, se mostra
cada dia mais estreito.
A ditadura amiga
Folha de S. Paulo
Ao celebrar eleição de fachada na
Nicarágua, PT mina discurso pró-democracia
Se Luiz Inácio Lula da Silva pretende
conquistar o eleitor mais ao centro exibindo-se como candidato comprometido com
a democracia e o respeito aos direitos humanos, precisa com urgência
entender-se com o PT. A nota que o
partido emitiu a respeito das eleições na Nicarágua sabota o
discurso pró-institucional de seu pré-candidato.
Para os petistas, o pleito nicaraguense foi
"uma grande manifestação popular e democrática", cujo resultado
confirmou "o apoio da população a um projeto político que tem como
principal objetivo a construção de um país socialmente justo e igualitário".
Uma descrição mais próxima aos fatos
caracterizaria a disputa, que deu a Daniel Ortega seu quarto mandato
presidencial consecutivo, como uma eleição de fachada com o objetivo de
legitimar um governo que assume feições cada vez mais ditatoriais.
Os outros cinco candidatos eram todos
aliados do governo —os que não eram foram presos. Também estão detidos outros
32 opositores, além de uma centena de sindicalistas, jornalistas e ativistas de
direitos humanos. O governo não hesita em utilizar as forças de segurança para
reprimir a população.
A eleição nicaraguense, na qual Ortega
obteve 75% dos votos, não contou com a presença de observadores internacionais.
A maioria das democracias avançadas exprimiu reservas em relação não apenas ao
resultado do pleito mas também à escalada autoritária.
Exceções incluem Rússia, Cuba, Venezuela e
Bolívia, além, claro, do PT. Até o Peru, do esquerdista Pedro Castillo,
entendeu que o pleito "não atende aos critérios mínimos de eleições
livres, justas e transparentes estabelecidos pela Carta Democrática Interamericana".
É interessante que Lula pareça ter
entendido o que está acontecendo na Nicarágua melhor do que os especialistas do
partido. Em agosto, a um canal de TV do México, o ex-presidente disse que seria
bom que houvesse alternância de poder naquele país e aconselhou Ortega a jamais
abrir mão da democracia.
É difícil saber por que a burocracia
petista insiste em defender ditaduras como as de Nicarágua, Cuba e Venezuela.
No caso em tela, líderes sandinistas, que estiveram ao lado de Ortega na
revolução, passaram a ser perseguidos por ele.
O PT decidiu retirar a nota de seu site
após a má repercussão, o que ainda aparenta ser mais uma mostra de pragmatismo
do que de genuína mudança de convicções.
Flávio, tão ‘perseguido’ quanto Lula
O Estado de S. Paulo
Flávio Bolsonaro tratou a decisão do STJ como se fosse o encerramento do caso das rachadinhas. Polícia, Ministério Público e TJ-RJ têm ainda muito trabalho pela frente
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou
as provas produzidas na 27.ª Vara Criminal do Rio de Janeiro no caso das
rachadinhas envolvendo o senador Flávio Bolsonaro. Foi uma decisão sobre
questão meramente processual. Como tinha sido decidido que a instância
competente para julgar o caso é o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro (TJ-RJ), as medidas de investigação autorizadas pela primeira instância
deveriam ser anuladas.
Mas que fique claro: a Justiça não disse,
em parte alguma, que não houve rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro,
quando o hoje senador era deputado estadual. Não houve decisão sobre o mérito
do caso, isto é, não se falou sobre a conduta do filho mais velho de Jair
Bolsonaro, presidente da República: se ele ficou ou não com parte do salário
dos assessores, se essas verbas foram ou não utilizadas para pagar despesas
pessoais, se houve ou não mistura desses recursos com a contabilidade da loja
de chocolates de Flávio, entre outras dúvidas que a população gostaria de ver
respondidas. A Corte apenas disse que as provas devem ser produzidas perante a
instância competente e, portanto, o que foi feito na 27.ª Vara Criminal do Rio
de Janeiro não poderia ser aproveitado.
A rigor, não se pode sequer dizer que a
decisão do STJ foi positiva para Flávio Bolsonaro. A princípio, para quem não
tem nada a temer da Justiça, o ideal é uma decisão rápida e definitiva sobre o
mérito do caso. Não foi o que ocorreu no STJ. A defesa de Flávio Bolsonaro
conseguiu uma vitória processual, cujo efeito prático é postergar a decisão
final sobre o caso. A fase probatória precisará ser refeita no TJ-RJ.
No entanto, Flávio Bolsonaro tratou a
decisão do STJ como se fosse o encerramento do caso. “A perseguição promovida
por alguns poucos membros do honrado Ministério Público do Rio de Janeiro, para
tentar atingir o presidente Bolsonaro, chega ao fim”, escreveu em sua conta no
Twitter, após a decisão da Corte. Em seguida, o filho mais velho de Jair
Bolsonaro publicou nova mensagem, agradecendo aos que “estiveram ao meu lado na
fase mais difícil da minha vida, que tanto sofrimento causou a minha família. ‘E
conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’”.
É preciso lembrar que a verdade sobre o
caso ainda não veio à tona. A Justiça nada disse sobre as suspeitas de
rachadinha no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. É enganoso,
portanto, transformar a decisão sobre questão processual em juízo sobre a sua
conduta. “Com isso, eu tenho o chamado caso das rachadinhas como vazio,
resolvido e com justiça”, disse a defesa do senador.
O Judiciário ainda não resolveu o caso das
rachadinhas. Polícia, Ministério Público e TJ-RJ têm muito trabalho pela
frente, até mesmo porque agora o STJ definiu que será preciso refazer toda a
investigação. Ao contrário do que disseram Flávio Bolsonaro e sua defesa, com a
decisão da Corte, o caso está ainda mais distante de seu término. Há muito a
apurar, especialmente depois que o Judiciário pacificou a questão sobre a
competência jurisdicional do caso.
Nessa história do caso das rachadinhas, com
Flávio Bolsonaro comemorando decisão de questão processual como se fosse
sentença de mérito, não há como não lembrar de outro famoso político que
costuma ter a mesma atitude nas suas ações penais. Naturalmente, as situações
processuais de Lula e de Flávio Bolsonaro são diferentes. Sobre cada um recaem
suspeitas específicas, envolvendo tipos penais específicos. No entanto, apesar
das diferenças, sobressai a mesma tática: a tentativa de transformar decisão
sobre a competência de uma instância – ou sobre a correção de algum magistrado
– em decisão de mérito.
Talvez Lula e Flávio Bolsonaro tenham, de
fato, algum motivo para comemorar com decisões sobre questões processuais. Uma
decisão judicial alterando a competência do caso é melhor do que eventual
condenação. Para o País, haverá motivo para comemoração apenas quando a
Justiça, depois de consistente produção probatória, manifestar-se
definitivamente sobre a conduta de cada um. E esse dia ainda está longe.
O esquisito critério do fundo de segurança
O Estado de S. Paulo
Injusto e ineficaz, o novo critério de
distribuição do Fundo Nacional de Segurança Pública só serve aos interesses
eleitorais de Bolsonaro
O Ministério da Justiça alterou os
critérios de repasse do Fundo Nacional de Segurança Pública. Cada Estado
receberá no mínimo 3,5% dos recursos. Assim, 94,5% serão repartidos em cotas
idênticas. É difícil imaginar um critério mais irracional, injusto e ineficaz.
Pelo menos quatro critérios serviriam para
aprimorar os repasses. Um é o demográfico, ou seja, distribuição per capita:
Estados mais populosos recebem mais. Outro é o socioeconômico: Estados mais
pobres recebem mais. Outro compensaria os déficits de segurança: Estados mais
violentos recebem mais. Por fim, um mecanismo de incentivos poderia premiar as
boas práticas, estimulando Estados com pior desempenho a replicar sistemas mais
eficazes. Uma combinação desses critérios talvez fosse o ideal.
Já a nova metodologia, contrariando as
propostas de um grupo de estudos criado pela Secretaria Nacional de Segurança
Pública (Senasp), é alheia às necessidades do enfrentamento ao crime. Na
prática, quanto maior a população de um Estado, menos ela receberá. Cada
habitante de São Paulo, por exemplo, receberá o equivalente a R$ 0,67, enquanto
o do Acre receberá R$ 31,55. Minas Gerais receberá praticamente o mesmo que
Sergipe, embora tenha 8 vezes mais policiais e 9 vezes mais habitantes.
É verdade que Estados do Norte e Nordeste,
em geral mais pobres e violentos, tendem a receber mais. Mas não
necessariamente. O Distrito Federal, por exemplo, que tem o maior PIB per
capita da Federação e o segundo menor índice de pobreza extrema (1,9%), será a
terceira unidade mais beneficiada, com R$ 8,8 milhões a mais do que os R$ 16,5
milhões previstos originalmente pela Senasp. Já o Pará, com 19,3% da população
na miséria, perderá R$ 4,3 milhões.
A Bahia, um dos dez Estados com menor PIB
per capita e o segundo mais violento, perderá R$ 2,7 milhões. Já Santa
Catarina, o segundo Estado menos violento e o quarto maior em PIB per capita,
receberá R$ 1,2 milhão a mais. O Rio de Janeiro, o maior epicentro do crime
organizado, perderá R$ 7,9 milhões.
O Estado mais beneficiado será o Espírito
Santo, com R$ 10,1 milhões a mais. Poder-se-ia supor que se trata de um prêmio
aos avanços capixabas. Não é o caso. São Paulo, que com muitas boas práticas se
tornou o Estado menos violento do País, será o mais prejudicado, perdendo R$
27,7 milhões.
Em suma, o novo critério nada tem a ver com
as necessidades regionais de segurança. O Fundo é só mais um pedaço dos cofres
públicos submetido às ambições eleitorais de Jair Bolsonaro. Recentemente, o
Planalto determinou por Medida Provisória a utilização do Fundo para
subvencionar crédito imobiliário a servidores da segurança, uma das bases
eleitorais de Bolsonaro. Agora, Estados que são bases eleitorais de seus
desafetos ou potenciais adversários – como São Paulo, Rio ou Minas – serão
expressivamente prejudicados, enquanto Estados em que Bolsonaro busca amealhar
votos – como Roraima, Paraíba ou Piauí – serão privilegiados.
Além de introduzir distorções no Fundo, o
governo negligenciou o Sistema Único de Segurança Pública, criado para integrar
as ações dos Estados, condição-chave para reprimir a expansão do crime
organizado. Se a única política de segurança pública que persegue com afinco, o
armamento da população, já é questionável, a redução dos mecanismos de controle
promovida por Bolsonaro é absolutamente injustificável. O dito “cidadão de
bem”, que legitimamente advoga a posse de arma como prerrogativa de seu direito
à autodefesa, não teria problema em se submeter a uma fiscalização rigorosa. Só
os criminosos ganham com menos controle.
Assim, o presidente não só negligencia
instrumentos para modernizar as forças de segurança, como está destruindo o
pouco que foi feito e municiando o crime. Não surpreende que os índices de
violência tenham voltado a subir.
Da bandeira da segurança pública de Bolsonaro, talvez a mais agitada em sua campanha, restam só farrapos. A população pagará sua incompetência e oportunismo por anos, literalmente com sangue e lágrimas.
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