sábado, 22 de janeiro de 2022

Dora Kramer: Parte e reparte

Revista Veja

Nem o céu será o limite enquanto a destinação de dinheiro para eleição for tarefa dos políticos

Quem parte e reparte fica sempre com a melhor parte, diz o velho ditado cuja carapuça serve à perfeição na cabeça dos políticos, detentores que são da prerrogativa de definir o montante de dinheiro público destinado a financiar as respectivas sobrevivências eleitorais.

Em breve falaremos da quantidade desses recursos, mas antes vamos abordar a qualidade do conceito segundo o qual cabe à população sustentar de modo integral entidades de direito privado (os partidos) que em tese não teriam a prerrogativa de receber pedaços do Orçamento da União. Nacos nem gordos nem magros, embora gordíssimos, no caso.

Além do ato com aroma de grossa inconstitucionalidade, a vergonhosa cena é acrescida pelo fato de a tarefa sobre a destinação das verbas estar nas mãos dos principais beneficiários do resultado. Se isso não configura grave conflito de interesses, difícil encontrar outra situação em que tal atrito entre vantagens e desvantagens poderia ser aplicado com tanta clareza.

Enquanto suas altezas continuarem sendo as responsáveis por determinar quanto dos recursos oriundos dos impostos de todos deve ser carreado para engordar os cofres dos partidos, nem o céu será o limite ante a sanha da apropriação indevida de verbas do Tesouro.

Vejamos, para demonstrar, a evolução da farra desde 2015, quando o Supremo Tribunal Federal proibiu o financiamento empresarial para campanhas, decisão desde então usada como pretexto para esse assalto aos recursos públicos.

No ano anterior, 2014, as empresas haviam dado 3 bilhões de reais aos partidos, que com isso cobriram 70% de suas despesas.

Em 2018, primeiro pleito sob a nova regra, o então recentemente criado Fundo Eleitoral deu 1,7 bilhão de reais aos partidos. Na eleição seguinte, municipal, dois anos depois, a verba subiu para 2,035 bilhões de reais. Uma enormidade, considerando-se que partido algum está obrigado a participar de eleições e quem quiser fazê-lo deveria procurar as próprias formas de viabilizar o propósito, obviamente dentro da obediência aos parâmetros legais.

Pois chegamos a 2022 na seguinte situação: 4,9 bilhões de reais já aprovados no Fundo Eleitoral com o governo já pensando em ceder à reivindicação dos partidos de 5,7 bilhões de reais. O Congresso certamente abraçará de bom grado a proposta, que nos levaria às seguintes cifras: a esses 5,7 bilhões de reais seriam acrescentados 972 milhões de reais do Fundo Partidário, mais 840 milhões de reais (dado de 2014) decorrentes da renúncia fiscal às emissoras.

Numa perspectiva conservadora, teríamos aí algo em torno de 7,5 bilhões de reais do suado dinheirinho do brasileiro assolado pela carestia, pelo desemprego e pela inflação destinados a financiar campanhas eleitorais. Isso num ambiente de fraquíssima fiscalização e de constantes denúncias sobre o uso indevido de verbas por parte dos partidos e de seus caciques.

Isso é normal, aceitável? Não, não é. Atende de maneira republicana à necessidade de financiar a democracia? Não, não atende. É malandragem, para não dizer ilegalidade, pura. Afinal, o que houve entre a eleição presidencial de 2018 e a de 2022 que justifique a multiplicação de verbas à velocidade praticamente quíntupla levando em conta só o Fundo Eleitoral?

Nada ocorreu, a não ser a leniência da sociedade diante do intimidador argumento de que democracias precisam ser financiadas a fim de não sucumbirem a investidas autoritárias. Uma bobagem, porque não é com dinheiro que se combatem tais ofensivas, e sim com respostas institucionais fortes e consistentes.

Uma delas poderia ser um movimento popular para tirar exclusivamente das mãos do Congresso a tarefa de decidir quem parte e reparte, a fim de que os potenciais beneficiários não fiquem sempre com a melhor parte.

Daria certo, seria possível? Talvez. Difícil, porém, pois teria de ser algo que transcendesse ao Parlamento, feito sem ferir os preceitos da legalidade. A despeito das possibilidades, probabilidades e dificuldades, seria algo a ser pensado tendo como alvo principal os direitos da sociedade, entre os quais não se inclui pagar as contas dos partidos.

Notadamente na ausência de contrapartidas aos contribuintes, que, ao pagamento das faturas de campanha, mereceriam no mínimo receber do universo político um tratamento melhor que os atuais (péssimos) serviços prestados.

Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2022, edição nº 2773

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