O Estado de S. Paulo.
Apenas com uma democracia revigorada será possível pensar em um Estado que defina políticas estratégicas para o País
O ano novo veio à luz carregando um fardo
de problemas para os brasileiros. Era de esperar.
A variante Ômicron da covid fez a pandemia
repicar, embalada pelo réveillon e por sua própria ferocidade. Acredita-se que
o pior pode ter passado, mas o que restou ainda é ameaçador. O recrudescimento
viral é preocupante. Tocar a vida com menos medo e mais segurança, seja em que
área for, parece ter se tornado uma das principais aspirações de 2022.
O repique pandêmico escancara a
incapacidade do governo brasileiro de responder aos efeitos do vírus. Por
tática ou burrice, o governo olha a pandemia com desdém. Alguma coisa acontece,
porém, graças à pressão de prefeitos e governadores, da opinião pública, de
agências e instituições estatais. A intenção governamental não é cuidar, mas tumultuar.
Sua atuação é pilotada por um Marcelo Queiroga desprovido de autonomia, postura
cívica e perfil público. Prolonga-se o desastre.
Some-se a isso a desorientação governamental em política econômica. Inflação, desemprego e baixa atividade produtiva combinam-se com a falta de critérios fiscais e tributários, com os ataques estapafúrdios ao teto de gastos e a distribuição de benesses a amigos e aliados. O cenário é preocupante pelos efeitos de curto prazo e para o que virá à frente: quanto mais tempo se perder, mais difícil será a retomada a partir de 2023, efeito bola de neve fácil de prever.
No terreno político, o ano vem embrulhado
para presente. Eleições sempre trazem esperança: redesenham o futuro, abrem a
possibilidade de mudança. Bastaria que se elegesse um governo que combine
ativismo técnico-administrativo com bom senso e esforço de construção
democrática, que respeite a Constituição e ajude a reformar o indispensável. O
País necessita ser tratado como um universo repleto de carências e potencialidades.
Pacificado, após quatro anos de destruição institucional e tensão.
O que parece fácil de imaginar é difícil de
ser construído. A política não saiu da letargia e da crise em que se encontra.
Partidos mal aparelhados, candidatos sem
foco claro, egoísmos e cálculos tópicos espalhados por todos os cantos, crenças
ingênuas de que a mudança de governo pode advir de meros atos de vontade. Há
preocupação em ganhar visibilidade, desinteresse em formular programas que
tirem o País do buraco.
O futuro que merecemos passa por uma
convergência democrática que garanta não a conquista do poder, mas a formação
de um governo que governe e cuide do País. Projetos e ambições particulares (de
pessoas ou partidos) precisariam ser arquivados temporariamente. A convergência
seria uma barca na qual se acomodassem todos os democratas, dos partidos de
esquerda à direita civilizada, dos liberais aos socialistas. O País só
avançará, no pós-bolsonaro, se houver uma suspensão das disputas fúteis por
poder e protagonismo, uma superação dos privilégios corporativos, uma ênfase no
combate à desigualdade.
2022 poderá representar o retorno de Lula.
As pesquisas que inflam seu nome sugerem que sua candidatura é irremovível e se
projeta como vitoriosa. Mas as águas não param de correr e a disputa, a rigor,
ainda não começou. A depender das batalhas que terá de travar, dentro e fora do
PT, Lula poderá desidratar um pouco. Afinal, Bolsonaro é um fracasso como
presidente, mas não está morto. O centro democrático se movimenta com lentidão
e sem direção clara, mas tende a encorpar. Um segundo turno poderá impulsionar
a convergência democrática, que viabilize a construção de um governo com
musculatura técnica, apetite reformador, foco estratégico e planejamento de
longo prazo, assentado em um ministério plural composto por quadros competentes
e “despartidarizados”. Lula poderia ser, nele, uma espécie de joia da coroa,
assim como os demais líderes que se qualificarem durante a disputa
presidencial.
É um equívoco achar que Lula é imbatível,
ou que seu governo, caso venha a ser eleito, será autossuficiente e promoverá
“rupturas” sem concessões e sem moderação. Necessitará de acordos e
negociações, e será melhor para todos se essa necessidade for compartilhada com
os democratas, não com os “fisiológicos”. O entorno de Lula tem ingredientes
tóxicos, desejosos de um acerto de contas, refratários a pactos e composições
consistentes. Como serão processados? Lula permanecerá se equilibrando entre
“revanchistas” e “pacificadores”?
Não sabemos se haverá um centro ativo e um
conjunto de lideranças propensas a convergir democraticamente em nome do
futuro. Proclamamos sua necessidade, mas não temos como descortinar, agora, os
rumos que a política tomará ao longo do ano.
Os anos pandêmicos estão mostrando que somente
com uma democracia revigorada será possível pensar em um Estado inteligente,
regulador e não empresarial, que defina políticas estratégicas (a saúde e a
educação antes de tudo) e trabalhe para inserir o Brasil no mundo como um
player importante da convivência pacífica entre as nações, do combate à crise
climática, de um novo modo de viver e conviver.
Empenhemo-nos por ela.
*Professor titular de teoria política da Unesp
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