sábado, 22 de janeiro de 2022

Eduardo Affonso: Jornal, substantivo plural

O Globo

Existiu, até os anos 60, o Index Librorum Prohibitorum, lista das publicações que iam contra os preceitos da Igreja Católica — motivo por que eram “canceladas” pela Inquisição e seus sucessores no departamento de censura religiosa. Heresia, concupiscência ou o que quer que desafinasse o coro canônico estava condenado à fogueira ou, no melhor dos casos, a ser banido das estantes. Eventualmente, o autor era queimado com a obra, como no caso do Giordano Bruno.

Censura e intolerância nunca foram monopólio de uma religião ou de Estados totalitários. Mesmo nas democracias, arrumam um jeito de dar as caras. E onde menos se esperaria: nas universidades (centros de produção e difusão do conhecimento) e na imprensa (que vive não só da notícia, mas também da informação crítica, da manifestação do pensamento).

Pluralismo e liberdade de expressão devem ser os princípios de qualquer publicação que pretenda ter alguma relevância. Não se espera de um folheto de sindicato que abra espaço à opinião do patrão, ou que o porta-voz oficial de um partido (principalmente se for do tipo partido único) permita o contraditório. Mas de que adianta uma imprensa livre se ela mesma se impuser tabus, lançar anátemas?

A tese de que discutir o racismo seja relativizá-lo é a desculpa de quem deseja que o tema seja interditado ao debate. Saem de cena os mandamentos do sagrado e entram os da ideologia. Divergência vira blasfêmia. O assunto passa a ser tão somente uma relação entre opressores e oprimidos — a velha luta de classes reloaded.

Usar a noção de raça para discriminar alguém — mesmo que de forma positiva — tem como efeito reforçá-la, e não o contrário. Acreditar que raças existem é a base de todo o racismo. E não é outra coisa o que fazem os devotos do identitarismo. Demétrio Magnoli já discorreu brilhantemente sobre o tema, em “Uma gota de sangue: história do pensamento racial”, e Antonio Risério, em suas obras mais recentes.

Porém, de algum tempo para cá, tudo o que diga respeito a essa questão (“racismo estrutural”, “racismo reverso”, “lugar de fala”) tomou ares de virgindade perpétua de Maria, estendendo a infalibilidade papal aos militantes da causa identitária. Discutir, debater, investigar ganharam, na novilíngua dos progressistas, o sentido de normalizar. Quem discorda ou questiona é automaticamente rebaixado a racista, supremacista — assim como os críticos da linguagem neutra são homofóbicos, transfóbicos, de masculinidade frágil, os que não se alinham à esquerda são isentões ou fascistas etc.

Ideias devem ser refutadas, não caladas. Ou o que se terá é autoritarismo sob a pele de justo combate às injustiças.

Imprensa livre é a que estimula o exercício da liberdade de expressão e abre espaço à pluralidade de pensamento. Quando um jornalista se transforma na D. Solange de si mesmo e dos colegas, e propõe um novo Index, ficamos todos mais burros.

 

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