sexta-feira, 4 de março de 2022

Fernando Gabeira: Um novo mundo após o carnaval

O Estado de S. Paulo

Expectativa é de que o próprio Congresso Nacional assuma o debate de como adaptar o Brasil às novas condições provocadas pela guerra

O mundo mudou com a invasão da Ucrânia e sofre mudanças mais profundas ainda com o desastre climático anunciado pelo mais recente relatório da ONU.

Aqui, no Brasil, quase ninguém riu ou brincou, e era carnaval. Estamos ainda na curva descendente da pandemia e, em termos de instituições políticas, não discutimos estratégias. É como se não houvesse amanhã.

A invasão da Ucrânia, entre os inúmeros temas que suscita, mostrou aos europeus que é necessário superar a dependência do gás importado da Rússia. E também revelou ao Brasil que é necessário superar a dependência dos fertilizantes que nos vendem os russos e belarussos.

Reconheço que este tema é árido. No entanto, defendo a ideia de que os candidatos deveriam discuti-lo na campanha, colocando como objetivo a autossuficiência nacional. Em princípio, parece interessar apenas ao agronegócio. Mas é uma ilusão. O tema subjacente é a segurança alimentar, que deve interessar a todos os que lutam para acabar com a fome no Brasil.

Houve um momento, no fim do século passado, em que o País produzia o fertilizante necessário para sua agricultura. Mas, com o tempo, a produção agrícola cresceu mais e descolou-se do ritmo mais lento dos fertilizantes. Isso é um grande problema, porque o solo nacional não é dos mais férteis. Há toxidez com alumínio em 63% das terras, e em 25% elevada fixação de fósforo.

Uma saída tranquila para este impasse só pode ser encontrada em médio e longo prazos. O governo é apenas uma parte da solução, pois a grandeza da tarefa transcende a sua capacidade.

O que parece tranquilo nesta equação estratégica é o fato de que o Brasil tem os recursos naturais necessários. Há potássio nas rochas verdes de São Gotardo, em Minas. Em Uberlândia, estão sendo realizadas pesquisas muito promissoras com o basalto. Já foi descoberta uma enorme reserva de potássio na Bacia Amazônia e há fósforo em grande quantidade em Mato Grosso.

A fórmula popular do fertilizante é NPK, nitrogênio, fósforo e potássio. Os fertilizantes nitrogenados dependem do preço do petróleo, e isso vai se agravar também com a guerra. O problema do nitrogênio é que, usado sem precisão, pode contribuir muito com o aquecimento global. E o da exploração do potássio na Amazônia é que depende de licenças ambientais e do respeito às características ecológicas da região.

A guerra na Ucrânia não inaugurou este debate no Brasil. Já há pesquisas sobre o tema. O próprio governo já criou comissões para orientá-lo em políticas que levem a uma redução da dependência. O que a guerra possibilita é tirar a discussão do tema dos escaninhos burocráticos e trazê-la para a luz do dia.

Pelo que li das pesquisas em Autazes (AM) e outras cidades do Amazonas, o potássio é encontrado numa grande profundidade. Seria possível retirá-lo sem grandes danos?

Um dos caminhos – não sei se suficiente – seria incentivar no Brasil a produção de fertilizante orgânico, trabalhando com resíduos naturais e industriais. A Política Nacional de Resíduos Sólidos é um instrumento que ajuda uma política de incentivo.

O ambiente marinho ainda não foi pesquisado. Vi muito cultivo de algas no Ceará destinado à produção de sabonete. Mas elas poderiam ser, também, fertilizantes orgânicos.

Todas essas hipóteses foram estimuladas pela pressão da guerra. Mas creio que é assim, sacudido por um grande evento histórico, que o País pode despertar para suas vulnerabilidades.

Outro tema estratégico é o da energia. No momento, discutimos muito como baixar o preço da gasolina. Mas a guerra alterou este quadro. O transporte por terra, mar e ar ficará muito mais caro. O País terá de discutir como enfrentar essas dificuldades no longo prazo. Não será apenas baixando o preço da gasolina aqui e ali que vamos resolver a questão. É preciso encontrar saídas, que nascem de grandes debates e se realizam com um grande esforço nacional.

Mais importante até que tratar dos temas econômicos é resolver a questão política do Brasil no mundo. Bolsonaro optou pela neutralidade, argumentando que não queria trazer as consequências da guerra para o Brasil. É uma suposição pueril. Todas as posições políticas implicam consequências, sobretudo esta de neutralidade, equacionada a partir dos fertilizantes e alheia às múltiplas relações com o Ocidente, que tomou partido claro na defesa da Ucrânia.

A expectativa é a de que, passando o carnaval, o próprio Congresso Nacional assuma o debate de como adaptar o Brasil às novas condições provocadas pela guerra.

Nesse sentido, o ideal – é preciso sempre superar arestas – seria promover um debate que contasse também com a contribuição das Forcas Armadas.

O único desdobramento indesejável é a retomada da vida política do País como se nada tivesse acontecido no mundo, tantos dramas na Ucrânia e na Europa para, aqui, tudo se acabar na quarta-feira.

As coisas estão ficando mais complicadas e, na medida em que se agravam, fica muito evidente a incapacidade de Bolsonaro de entendê-las e de reagir adequadamente. Se não houver um debate, o resultado será sempre pior para nós: mais uma vez, seremos surpreendidos por mudanças para as quais não soubemos nos preparar.

 

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