Folha de S. Paulo
Quantos males pode haver na Pandora aberta
de Kosovo?
Vladimir
Putin violou a Carta das Nações Unidas e o direito internacional.
Qualquer que seja o desdobramento de sua ação na Ucrânia,
já é o grande derrotado.
A Rússia é
uma ditadura mitigada. Pós-guerra e sanções, ele só permanecerá no poder com
tirania explícita. Cometeu erros, mas contribuiu, apelando a Eça de Queirós,
para retirar do tal Ocidente o manto diáfano da fantasia que cobria a nudez
forte da verdade.
Potências não podem —ou não deveriam—
romper as regras do direito internacional, pretextando ou não a intervenção
humanitária. Quantas vezes, no entanto, também os EUA, com ou sem Otan, o fizeram e
o farão?
No realismo de um Carl Schmitt (1888-1985), por exemplo, americanos e russos agiram em nome do que importa: a segurança, não os direitos. No plano intelectual, lutemos contra a herança de Thomas Hobbes, resgatando como inspiração moral a Escola Ibérica da Paz, nunca estudada por aqui.
O realismo cru não se ocupa de limitar o
poder de Estado, mas de justificá-lo. A segurança como um bem que exclui os
direitos abre a vereda para a terra dos mortos.
A parceria entre a Otan e os "primaveristas" da Líbia e da Síria, por
exemplo, inventou a quimera do "jihadismo da liberdade", que fez da
África um ninhal de terroristas e deu à luz o Estado Islâmico.
A máquina de guerra dos EUA, diga-se, está sempre ocupada em duas coisas: em
combater terroristas e em fabricá-los. O vexame no Afeganistão, que Joe Biden
tenta agora compensar, é eloquente. A propósito: quem vai um dia recolher as
armas distribuídas às milícias ucranianas, às quais poetastros dedicam
panegíricos canhestros?
Mais de uma vez os EUA e a Otan mandaram a
carta da ONU às favas e atacaram países soberanos. Quantos males pode haver na
Pandora aberta de Kosovo?
"Isso justifica Putin?" Não! Mas quem define quando a violação ao
direito internacional deve ser punida ou aplaudida? Infelizmente, é o tal
"realismo cru".
Quantas crianças a Arábia Saudita, aliada
dos EUA, pode matar no Iêmen? Temos de rejeitar o pretexto da segurança como
fundamento de invasões. Putin não me seduz. EUA não me enganam. São diferentes,
mas se combinam.
Realismo sangrento e triunfo das regras, no
entanto, não se plasmam no éter, mas na história.
A expansão da Otan para o Leste europeu
pós-dissolução da URSS não era parte do jogo. Não houve proibição explícita,
mas um acordo tácito de autocontenção. James Baker, um liberal, queria a Rússia
na aliança. Henry Kissinger, oráculo ou monstro do realismo, defendeu uma
Ucrânia livre, mas fora do grupo, seguindo o modelo da Finlândia.
Na semana passada, a Otan convidou o país a
ser sócio, o que nos remete, a um só tempo, à revolução de 1917 e ao cerco de
872 dias a Leningrado, quando os finlandeses se juntaram a nazistas e
fascistas.
A história não tem de oprimir como um
pesadelo o cérebro dos vivos. Tem de instruí-los.
"Que países soberanos se juntem com quem quiser", diz o bobalhão. É
essa a diretriz que emana de Washington nas suas "zonas de influência?
Ignorar que o adversário à frente da Otan é a Rússia corresponde a abandonar os
fatos. E Putin segue sendo um criminoso.
No discurso do Estado da União, Biden
jactou-se de ter sequestrado parte das reservas russas e anunciou uma caçada
aos "magnatas" mundo afora. Afinal, o país dispõe do FCPA (Foreing
Corrupt Practices Act), que dá a seu Departamento de Justiça autorização para
atuar como polícia do mundo. Em nome da... segurança!
A China apresentou-se como mediadora do conflito.
Deve olhar com interesse para uns EUA capazes de tomar títulos de sua dívida
comprados por terceiros. Quem tem Taiwan sabe enxergar uma metáfora, embora a
comparação seja descabida porque a ilha nunca teve o status de país soberano.
Putin se lascou, mas contribuiu, com sua
truculência, para revelar a nudez forte da verdade.
Enquanto não tem de enfrentar para valer a
China, os americanos precisam da Rússia — e de Putin, o execrável — para
brincar de Guerra Fria.
É o declínio do império americano no seu
esplendor. E olhem que nem falei do "Bulava". Como? Você não sabe o
que é Bulava? Corra para o Google e para seu livro de orações.
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