sexta-feira, 4 de março de 2022

Maria Cristina Fernandes: O visionário que previu o conflito

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Alerta contra a expansão da Otan é o mais lembrado, mas George Kennan também advertiu para o fortalecimento das instituições ocidentais que já não são mais alvo da investida comunista, mas do populismo de direita

No dia 18 de janeiro de 1990, George Kennan, maior conhecedor da Rússia na história da diplomacia americana, chegou ao Comitê de Relações Internacionais do Senado. Tinha 86 anos e viu-se na obrigação de se preparar exaustivamente para falar sobre o estado da arte da relação entre os dois países.

Lá encontrou um único senador, representante de Delaware, 48 anos, e no exercício do seu terceiro mandato. O esvaziamento da sessão “reduziu sobremaneira a qualidade do evento”, disse Kennan, ao considerá-la sua despedida da vida pública.

A melancolia testemunhada por Joe Biden naquela audiência pública foi a de um diplomata que viu se perderem todas as fichas apostadas na suspensão da escalada armamentista. Trinta e dois anos depois, o presidente americano recusa-se a enviar tropas e lidera a política de sanções contra a brutalidade do ataque à Ucrânia.

Durante mais de três décadas no Senado, porém, Biden participou ativamente do debate e da formulação da política externa americana que acabou por reescrever as diretrizes deixadas por Kennan, morto em 2005, aos 101 anos.

Entre 2001 e 2009, as despesas do Pentágono cresceram 70%. Passaram de um terço dos gastos militares mundiais para metade. Durante metade desse período, Biden presidiu a Comissão de Relações Exteriores do Senado.

Bancadas republicanas e democratas têm defendido, em nome da geração de empregos, a indústria bélica estrategicamente distribuída em estados-chave da Federação. Foi assim que se construiu o apoio parlamentar às intervenções americanas no Afeganistão, no Iraque e na Síria.

No momento daquela audiência pública, Vladimir Putin estava em seu penúltimo ano de KGB, de onde sairia para entrar na política e, em 1999, substituir Bóris Iéltsin no poder, de onde não sairia mais. Nascido no ano em que Kennan tornou-se embaixador em Moscou, Putin é representante da geração que o diplomata americano apontou como aquela que carregaria tanto os traumas da ditadura comunista quanto das humilhações decorrentes da dissolução da URSS.

Foi a liberalização desenfreada, sem instituições que pudessem regulá-la, que criou as bases para o populismo autoritário de direita na Rússia e para os oligopólios que hoje dominam a economia e sustentam Putin.

“Coisas normais como a segurança e o conforto do lar praticamente só existem nos lugares mais remotos da União Soviética. E observadores ainda não têm certeza se isso não vai deixar sua marca na geração que está ingressando na maturidade”, escreveu Kennan em 1947, sob o pseudônimo “X”, em artigo na “Foreign Affairs”.

Kennan tem sido celebrado como o visionário que, nos anos 1940, previu a guerra que ora se desenrola na Ucrânia com seus alertas sobre os acordos do pós-guerra que deram início à Guerra Fria e aqueles que, depois da queda do Muro de Berlim, fizeram avançar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) sobre os despojos do antigo império soviético.

Nos primeiros dias da guerra, o decano dos analistas de política externa americana, Thomas Friedman, foi um dos primeiros a lembrar Kennan em sua coluna no “The New York Times”: “Ele [Putin] é um líder ruim para a Rússia e para seus vizinhos. Mas os EUA e a Otan não são espectadores inocentes nesta evolução”.

A leitura das 768 páginas do diário do diplomata americano, “The Kennan Diaries” (W. W. Norton & Company, 2014), deixa claro que seu legado não pode ser reivindicado pela extrema esquerda que ainda considera a Rússia um foco de resistência ao imperialismo americano, nem pela extrema direita que vê Putin como um aliado contra os alicerces da democracia ocidental.

O jovem diplomata de 29 anos, fluente em russo e leitor compulsivo de Anton Tchékhov, chegou a Moscou em 1933 junto com a primeira missão diplomática americana depois do reconhecimento, pelos Estados Unidos, da União Soviética. Ainda serviria mais uma vez no país, nos anos 1940, antes de voltar, em 1952, como embaixador.

Ao longo desses anos passados na Rússia, Kennan descobriu um grampo em seu gabinete e foi chamado de “inimigo da URSS” pelo “Pravda”, mas nunca perdeu a visão idílica do país - do diplomata que preferia viver na Sibéria a morar na Park Avenue, em Nova York, àquele que, às vésperas do seu centenário, sonhava estar em busca da mãe, morta na sua infância, em meio a multidões de camponeses russos.

Parece ter sido este o gás de sua busca persistente em traduzir a Rússia para os americanos. O primeiro documento que lhe deu fama foi o do telegrama de 1946, escrito depois da derrota em sua posição favorável à permanência da Alemanha como um país uno, desmilitarizado e neutro.

No telegrama, escrito a partir de Moscou, Kennan recomendou que os Estados Unidos não confrontassem o Kremlin porque Stalin precisava de um inimigo externo para justificar a ditadura. Sugeriu três caminhos - contenção, reconstrução da Europa com o que ficaria conhecido como o Plano Marshall, e fortalecimento das instituições.

A expansão da Otan ignorou a política de contenção e a reconstrução da Europa não impediu outra guerra em suas fronteiras. A última das sugestões do diplomata americano, porém, é a menos lembrada.

Kennan dizia que o que mais vulnerabilizava o Ocidente frente aos soviéticos era a permanência de uma sociedade fatalista e indiferente aos problemas de suas comunidades. Ele via o Ocidente desagregado e suscetível à influência soviética sobre sindicatos, movimentos estudantis e organizações sociais de toda ordem.

Esta visão moldou a ajuda americana à Europa via Plano Marshall, mas custou a prevalecer entre os compatriotas de Kennan que, como ele mesmo descreve, preferiam combater os soviéticos com falsa propaganda a educar o público americano para a realidade russa: “A imprensa não pode fazer isso sozinha (...) haveria um anti-sovietismo bem menos histérico em nosso país se as realidades desta situação fossem melhor compreendidas. Não há nada tão perigoso quanto aterrorizar o desconhecido”.

Setenta e seis anos depois, os papéis se inverteram. Enquanto um apoplético Biden não soube o que responder aos repórteres que lhe indagaram, na primeira entrevista pós-invasão, como os EUA negociariam o cerco à Rússia com a China e a Índia, Putin partiu para a ameaça aberta no discurso com o qual anunciou os ataques: “Quem quer que tente interferir conosco, e ainda mais para criar ameaças ao nosso país, ao nosso povo, deve saber que a resposta da Rússia será imediata e o levará a consequências como você nunca experimentou em sua história”.

Putin vale-se do segundo maior arsenal nuclear do mundo para ameaçar o planeta, risco que Kennan via ausente das reflexões de Mikhail Gorbachev. Achava que o líder da Perestroika havia prestado um serviço à humanidade com a destruição do antigo sistema, mas o julgava desprovido de qualidades para a política e para a administração pública. E temia pelo futuro da Rússia e de suas relações com o Ocidente.

Em 5 de maio de 1990, escreveu em seu diário: “Nosso governo se prepara, sob pressão dos parceiros linha-dura da Otan, notadamente franceses e britânicos, para explorar a precária e confusa situação da Rússia com vistas a excluí-la de qualquer participação nos problemas de segurança do continente (...) sempre achei um erro tirar vantagem de uma posição momentaneamente enfraquecida de outro grande poder para tirar vantagens que não seriam obtidas sob circunstâncias normais”, disse Kennan, antes de concluir que ali estava sendo germinada a semente da vingança.

Restringir os motivos da guerra da Ucrânia à expansão da Otan é uma maneira tão ligeira quanto incompleta de resumir Kennan. A ascensão de regimes de extrema direita que flertam ou flertaram com Putin, dos Estados Unidos de Donald Trump à Hungria de Viktor Orban, passando pelo Brasil de Jair Bolsonaro, se deu sob a deterioração das condições de vida nesses países.

Aquela ordem que serviu de chamariz para a adesão de partidos, sindicatos, estudantes, operários e intelectuais ao comunismo acabou. É ao populismo ultraconservador que tem em Putin um ícone e na Rússia, um abrigo para suas investidas cibernéticas, que os contingentes eleitorais vulneráveis ficaram expostos.

O ataque à Ucrânia já tirou do líder russo o apoio de lideranças europeias deste campo, como Matteo Salvini, na Itália, e Marine Le Pen e Eric Zemmour, na França, e provocou reações bipolares de Donald Trump, nos EUA.

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, de seu carnaval no Guarujá (SP), vestiu a fantasia de estadista da ambiguidade. Valeu-se da viagem a Moscou para mostrar alguma participação na política mundial que não seja a da ojeriza e só contribuiu para desgastar ainda mais a política externa brasileira. Está abraçado ao "bolivarianismo" que tanto criticou. Basta ver o que Nicolás Maduro e Daniel Ortega dizem do conflito.

A principal aposta do Ocidente para o cerco a Putin continua sendo o das sanções econômicas. O maior dos óbices a esta estratégia, porém, é a dependência que a Europa tem de suas fontes de energia. Uma COP-25 e uma pandemia depois, a urgência da mudança na matriz energética não resistiu à guerra. As gigantes russas de gás, Gazprom, e de petróleo, Rosneft, foram excluídas das sanções econômicas largamente anunciadas e continuam a financiar Putin.

Em 2001, às vésperas de seu centenário, Kennan se pôs a refletir sobre a iminência de novos conflitos. Disse que nenhum dos países envolvidos poderia se arvorar na mediação de uma solução sem que fontes alternativas de energia fossem encontradas para manter o padrão de conforto alcançado pelas economias ocidentais.

Kennan dizia receber de 500 a mil convites por mês para palestras, mas não se encantava com isso. Via-se como uma fonte de entretenimento e não como agente de mudança.

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