Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Alerta contra a expansão da Otan é o mais
lembrado, mas George Kennan também advertiu para o fortalecimento das
instituições ocidentais que já não são mais alvo da investida comunista, mas do
populismo de direita
No dia 18 de janeiro de 1990, George Kennan, maior conhecedor
da Rússia na
história da diplomacia americana, chegou ao Comitê de Relações Internacionais
do Senado. Tinha 86 anos e viu-se na obrigação de se preparar exaustivamente
para falar sobre o estado da arte da relação entre os dois países.
Lá encontrou um único senador,
representante de Delaware, 48 anos, e no exercício do seu terceiro mandato. O
esvaziamento da sessão “reduziu sobremaneira a qualidade do evento”, disse
Kennan, ao considerá-la sua despedida da vida pública.
A melancolia testemunhada por Joe Biden naquela audiência pública foi a de um diplomata que viu se perderem todas as fichas apostadas na suspensão da escalada armamentista. Trinta e dois anos depois, o presidente americano recusa-se a enviar tropas e lidera a política de sanções contra a brutalidade do ataque à Ucrânia.
Durante mais de três décadas no Senado,
porém, Biden participou ativamente do debate e da formulação da política
externa americana que acabou por reescrever as diretrizes deixadas por Kennan,
morto em 2005, aos 101 anos.
Entre 2001 e 2009, as despesas do Pentágono
cresceram 70%. Passaram de um terço dos gastos militares mundiais para metade.
Durante metade desse período, Biden presidiu a Comissão de Relações Exteriores
do Senado.
Bancadas republicanas e democratas têm
defendido, em nome da geração de empregos, a indústria bélica estrategicamente
distribuída em estados-chave da Federação. Foi assim que se construiu o apoio
parlamentar às intervenções americanas no Afeganistão, no Iraque e na Síria.
No momento daquela audiência pública,
Vladimir Putin estava em seu penúltimo ano de KGB, de onde sairia para entrar
na política e, em 1999, substituir Bóris Iéltsin no poder, de onde não sairia
mais. Nascido no ano em que Kennan tornou-se embaixador em Moscou, Putin é
representante da geração que o diplomata americano apontou como aquela que
carregaria tanto os traumas da ditadura comunista quanto das humilhações
decorrentes da dissolução da URSS.
Foi a liberalização desenfreada, sem
instituições que pudessem regulá-la, que criou as bases para o populismo
autoritário de direita na Rússia e para os oligopólios que hoje dominam a
economia e sustentam Putin.
“Coisas normais como a segurança e o
conforto do lar praticamente só existem nos lugares mais remotos da União
Soviética. E observadores ainda não têm certeza se isso não vai deixar sua
marca na geração que está ingressando na maturidade”, escreveu Kennan em 1947,
sob o pseudônimo “X”, em artigo na “Foreign Affairs”.
Kennan tem sido celebrado como o visionário
que, nos anos 1940, previu a guerra que ora se desenrola na Ucrânia com seus
alertas sobre os acordos do pós-guerra que deram início à Guerra Fria e aqueles
que, depois da queda do Muro de Berlim, fizeram avançar a Organização do
Tratado do Atlântico Norte (Otan) sobre os despojos do antigo império
soviético.
Nos primeiros dias da guerra, o decano dos
analistas de política externa americana, Thomas Friedman, foi um dos primeiros
a lembrar Kennan em sua coluna no “The New York Times”: “Ele [Putin] é um líder
ruim para a Rússia e para seus vizinhos. Mas os EUA e a Otan não são
espectadores inocentes nesta evolução”.
A leitura das 768 páginas do diário do
diplomata americano, “The Kennan Diaries” (W. W. Norton & Company, 2014),
deixa claro que seu legado não pode ser reivindicado pela extrema esquerda que
ainda considera a Rússia um foco de resistência ao imperialismo americano, nem
pela extrema direita que vê Putin como um aliado contra os alicerces da
democracia ocidental.
O jovem diplomata de 29 anos, fluente em
russo e leitor compulsivo de Anton Tchékhov, chegou a Moscou em 1933 junto com
a primeira missão diplomática americana depois do reconhecimento, pelos Estados
Unidos, da União Soviética. Ainda serviria mais uma vez no país, nos anos 1940,
antes de voltar, em 1952, como embaixador.
Ao longo desses anos passados na Rússia,
Kennan descobriu um grampo em seu gabinete e foi chamado de “inimigo da URSS”
pelo “Pravda”, mas nunca perdeu a visão idílica do país - do diplomata que
preferia viver na Sibéria a morar na Park Avenue, em Nova York, àquele que, às
vésperas do seu centenário, sonhava estar em busca da mãe, morta na sua
infância, em meio a multidões de camponeses russos.
Parece ter sido este o gás de sua busca
persistente em traduzir a Rússia para os americanos. O primeiro documento que
lhe deu fama foi o do telegrama de 1946, escrito depois da derrota em sua
posição favorável à permanência da Alemanha como um país uno, desmilitarizado e
neutro.
No telegrama, escrito a partir de Moscou,
Kennan recomendou que os Estados Unidos não confrontassem o Kremlin porque
Stalin precisava de um inimigo externo para justificar a ditadura. Sugeriu três
caminhos - contenção, reconstrução da Europa com o que ficaria conhecido como o
Plano Marshall, e fortalecimento das instituições.
A expansão da Otan ignorou a política de
contenção e a reconstrução da Europa não impediu outra guerra em suas
fronteiras. A última das sugestões do diplomata americano, porém, é a menos
lembrada.
Kennan dizia que o que mais vulnerabilizava
o Ocidente frente aos soviéticos era a permanência de uma sociedade fatalista e
indiferente aos problemas de suas comunidades. Ele via o Ocidente desagregado e
suscetível à influência soviética sobre sindicatos, movimentos estudantis e
organizações sociais de toda ordem.
Esta visão moldou a ajuda americana à
Europa via Plano Marshall, mas custou a prevalecer entre os compatriotas de
Kennan que, como ele mesmo descreve, preferiam combater os soviéticos com falsa
propaganda a educar o público americano para a realidade russa: “A imprensa não
pode fazer isso sozinha (...) haveria um anti-sovietismo bem menos histérico em
nosso país se as realidades desta situação fossem melhor compreendidas. Não há
nada tão perigoso quanto aterrorizar o desconhecido”.
Setenta e seis anos depois, os papéis se
inverteram. Enquanto um apoplético Biden não soube o que responder aos
repórteres que lhe indagaram, na primeira entrevista pós-invasão, como os EUA
negociariam o cerco à Rússia com a China e a Índia, Putin partiu para a ameaça
aberta no discurso com o qual anunciou os ataques: “Quem quer que tente
interferir conosco, e ainda mais para criar ameaças ao nosso país, ao nosso
povo, deve saber que a resposta da Rússia será imediata e o levará a
consequências como você nunca experimentou em sua história”.
Putin vale-se do segundo maior arsenal
nuclear do mundo para ameaçar o planeta, risco que Kennan via ausente das
reflexões de Mikhail Gorbachev. Achava que o líder da Perestroika havia
prestado um serviço à humanidade com a destruição do antigo sistema, mas o
julgava desprovido de qualidades para a política e para a administração
pública. E temia pelo futuro da Rússia e de suas relações com o Ocidente.
Em 5 de maio de 1990, escreveu em seu
diário: “Nosso governo se prepara, sob pressão dos parceiros linha-dura da
Otan, notadamente franceses e britânicos, para explorar a precária e confusa
situação da Rússia com vistas a excluí-la de qualquer participação nos
problemas de segurança do continente (...) sempre achei um erro tirar vantagem
de uma posição momentaneamente enfraquecida de outro grande poder para tirar
vantagens que não seriam obtidas sob circunstâncias normais”, disse Kennan,
antes de concluir que ali estava sendo germinada a semente da vingança.
Restringir os motivos da guerra da Ucrânia
à expansão da Otan é uma maneira tão ligeira quanto incompleta de resumir
Kennan. A ascensão de regimes de extrema direita que flertam ou flertaram com
Putin, dos Estados Unidos de Donald Trump à Hungria de Viktor Orban, passando
pelo Brasil de Jair Bolsonaro, se deu sob a deterioração das condições de vida
nesses países.
Aquela ordem que serviu de chamariz para a
adesão de partidos, sindicatos, estudantes, operários e intelectuais ao
comunismo acabou. É ao populismo ultraconservador que tem em Putin um ícone e
na Rússia, um abrigo para suas investidas cibernéticas, que os contingentes
eleitorais vulneráveis ficaram expostos.
O ataque à Ucrânia já tirou do líder russo
o apoio de lideranças europeias deste campo, como Matteo Salvini, na Itália, e
Marine Le Pen e Eric Zemmour, na França, e provocou reações bipolares de Donald
Trump, nos EUA.
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, de
seu carnaval no Guarujá (SP), vestiu a fantasia de estadista da ambiguidade.
Valeu-se da viagem a Moscou para mostrar alguma participação na política
mundial que não seja a da ojeriza e só contribuiu para desgastar ainda mais a
política externa brasileira. Está abraçado ao "bolivarianismo" que
tanto criticou. Basta ver o que Nicolás Maduro e Daniel Ortega dizem do conflito.
A principal aposta do Ocidente para o cerco
a Putin continua sendo o das sanções econômicas. O maior dos óbices a esta
estratégia, porém, é a dependência que a Europa tem de suas fontes de energia.
Uma COP-25 e uma pandemia depois, a urgência da mudança na matriz energética
não resistiu à guerra. As gigantes russas de gás, Gazprom, e de petróleo,
Rosneft, foram excluídas das sanções econômicas largamente anunciadas e
continuam a financiar Putin.
Em 2001, às vésperas de seu centenário,
Kennan se pôs a refletir sobre a iminência de novos conflitos. Disse que nenhum
dos países envolvidos poderia se arvorar na mediação de uma solução sem que
fontes alternativas de energia fossem encontradas para manter o padrão de
conforto alcançado pelas economias ocidentais.
Kennan dizia receber de 500 a mil convites por mês para palestras, mas não se encantava com isso. Via-se como uma fonte de entretenimento e não como agente de mudança.
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