O Globo
Em meio ao luto por Petrópolis — até ontem,
232 mortes confirmadas, cinco desaparecidos e 1.007 pessoas em abrigos, segundo
a prefeitura local — e a perplexidade pela guerra na Europa, o Rio de Janeiro
atravessou um arremedo de carnaval, materializado em festas pagas, blocos
clandestinos, celebrações na Cidade do Samba e manifestações tradicionais nas
zonas Norte e Oeste, caso dos grupos de clóvis, os bate-bolas. A rede hoteleira
faturou, parte da população se divertiu, mas as escolas de samba não atravessaram
a Marquês de Sapucaí nem as avenidas Chile e Intendente Magalhães. O Cordão da
Bola Preta, para ficar num exemplo de megabloco impedido de desfilar, não lotou
a Rio Branco, em razão das — justificadas, mas seletivas — restrições
sanitárias pela pandemia.
Na Quarta-Feira de Cinzas, a Liesa divulgou calendário de ensaios técnicos das agremiações do Grupo Especial, em cinco domingos, a partir de 13 de março, antecedendo o que já é perigosamente chamado de segundo carnaval, entre 20 e 24 do próximo mês. Não é de hoje que a indústria do turismo defende data fixa, em detrimento do calendário móvel, que atrapalharia os visitantes e a temporada. Desfile de escola de samba em abril, ainda que coincida com o dia de reverenciar São Jorge (no Rio, Ogum, na Bahia, Oxóssi), é evento carnavalesco. É também necessária reparação de danos à massa de trabalhadores, que amargou vulnerabilidade no par de anos de pandemia. Mas não é carnaval.
O “Dicionário da história social do samba”,
obra premiada de Nei Lopes e Luiz Antonio Simas, define carnaval como: “Período
de festivais ou festas profanas de origem religiosa registrado em diversas
culturas arcaicas, inclusive africanas. No Brasil, originário do calendário
católico, manifesta-se em duplo aspecto: dionisíaco (folia) e apolíneo
(espetáculo)”.
Há tradições históricas, culturais e
religiosas que explicam e justificam a realização da festa como marco do início
da quaresma —e não apenas para os cristãos. Menina, lembro de minha mãe ir ao
terreiro nas sextas-feiras de carnaval para buscar a proteção que carregaríamos
nos dias de folia. Obrigação certa. A partir dali, os ilês permaneciam fechados
até a Sexta-Feira Santa, para reabrir em festa no Sábado de Aleluia. Não há
como ser carnaval o evento marcado para a véspera do feriado de Tiradentes.
Não é novidade o povo preto do Rio ter
expressões culturais desqualificadas, criminalizadas e, não raro, sequestradas.
Capoeira, samba e funk são exemplos de manifestações que se impõem pelas
frestas, em eterna tensão com um poder público que aperta e alivia, reprime e
faz vista grossa, morde e assopra. O arrefecimento da pandemia permitiu a
liberação de eventos privados fechados, supostamente com controle sanitário via
passaporte vacinal e testagem prévia, e silenciou os tambores das escolas de
samba e dos blocos.
A rua resistiu com folia não autorizada nos
quatro dias do feriado. Um feito. Haroldo Costa, ator, escritor, produtor e
sambista, celebra a ousadia: “O carnaval se afirma através das atitudes
transgressoras que são praticadas em todos os níveis. Os blocos clandestinos
dão a medida exata deste comportamento. Carnaval é um estado de espírito
contagiante e irrefreável”. Para Helena Theodoro, mestre em educação, doutora
em filosofia, pesquisadora de história e cultura afro-brasileiras, as
aglomerações dos últimos dias foram “a forma que o povo encontrou para estar
junto, trocar energia, se alegrar”.
Em 2022, dá para dizer que teve carnaval. E
que não teve. As agremiações que contam a história e moldam a identidade do
povo carioca foram barradas no baile da hipocrisia, privilégio dos pagantes.
Aconteceu antes com o Réveillon. Em troca de minutos de fogos na virada na
Igreja da Penha, na Ilha do Governador, no estádio de Moça Bonita, na orla de
Sepetiba, a prefeitura do Rio fechou o metrô a partir das 20h do último dia de
2021. Reservou a moradores e turistas a festa da Praia de Copacabana, tornada
maior Réveillon do planeta pela fé dos umbandistas, que, vestindo branco,
inauguraram, décadas atrás, os cortejos até o mar em homenagem a Iemanjá.
Surrupiaram o Réveillon. Sabotaram o
carnaval dos blocos e das escolas de samba. Silenciamos. A festa que acontecerá
em abril há de lembrar a cidade da força cultural e da potência dessa cadeia
produtiva. Estudo recém-concluído pela Secretaria municipal de Desenvolvimento
Econômico e pela Fundação João Goulart estimou que só os desfiles no Sambódromo
envolvem 45 mil ocupações. Entre artistas, componentes, trabalhadores e
público, cada noite na Sapucaí reúne 100 mil pessoas, quantidade superior à
população de 94% dos municípios brasileiros.
Em 2020, a festa recebeu 2,1 milhões de
turistas e rendeu R$ 4 bilhões. Os cofres municipais arrecadaram 23% mais ISS
em serviços de hospedagem, turismo, lazer e arte. No carnaval de rua, os
economistas Gabriel Pinto e Cristina Couri estimaram movimento financeiro de R$
1 bilhão nos 376 blocos, que geraram cerca de 20 mil postos de trabalho e
arrastaram mais de 6,8 milhões de pessoas naquele ano.
O carnaval é uma joia do Rio e tem de ser
preservado. Gera riqueza, mas, sobretudo, representa histórica, cultural e
espiritualmente a cidade como nenhuma outra festa, em nenhuma outra data. É
uno, não duo.
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