sexta-feira, 4 de março de 2022

Flávia Oliveira: O carnaval é uno

O Globo

Em meio ao luto por Petrópolis — até ontem, 232 mortes confirmadas, cinco desaparecidos e 1.007 pessoas em abrigos, segundo a prefeitura local — e a perplexidade pela guerra na Europa, o Rio de Janeiro atravessou um arremedo de carnaval, materializado em festas pagas, blocos clandestinos, celebrações na Cidade do Samba e manifestações tradicionais nas zonas Norte e Oeste, caso dos grupos de clóvis, os bate-bolas. A rede hoteleira faturou, parte da população se divertiu, mas as escolas de samba não atravessaram a Marquês de Sapucaí nem as avenidas Chile e Intendente Magalhães. O Cordão da Bola Preta, para ficar num exemplo de megabloco impedido de desfilar, não lotou a Rio Branco, em razão das — justificadas, mas seletivas — restrições sanitárias pela pandemia.

Na Quarta-Feira de Cinzas, a Liesa divulgou calendário de ensaios técnicos das agremiações do Grupo Especial, em cinco domingos, a partir de 13 de março, antecedendo o que já é perigosamente chamado de segundo carnaval, entre 20 e 24 do próximo mês. Não é de hoje que a indústria do turismo defende data fixa, em detrimento do calendário móvel, que atrapalharia os visitantes e a temporada. Desfile de escola de samba em abril, ainda que coincida com o dia de reverenciar São Jorge (no Rio, Ogum, na Bahia, Oxóssi), é evento carnavalesco. É também necessária reparação de danos à massa de trabalhadores, que amargou vulnerabilidade no par de anos de pandemia. Mas não é carnaval.

O “Dicionário da história social do samba”, obra premiada de Nei Lopes e Luiz Antonio Simas, define carnaval como: “Período de festivais ou festas profanas de origem religiosa registrado em diversas culturas arcaicas, inclusive africanas. No Brasil, originário do calendário católico, manifesta-se em duplo aspecto: dionisíaco (folia) e apolíneo (espetáculo)”.

Há tradições históricas, culturais e religiosas que explicam e justificam a realização da festa como marco do início da quaresma —e não apenas para os cristãos. Menina, lembro de minha mãe ir ao terreiro nas sextas-feiras de carnaval para buscar a proteção que carregaríamos nos dias de folia. Obrigação certa. A partir dali, os ilês permaneciam fechados até a Sexta-Feira Santa, para reabrir em festa no Sábado de Aleluia. Não há como ser carnaval o evento marcado para a véspera do feriado de Tiradentes.

Não é novidade o povo preto do Rio ter expressões culturais desqualificadas, criminalizadas e, não raro, sequestradas. Capoeira, samba e funk são exemplos de manifestações que se impõem pelas frestas, em eterna tensão com um poder público que aperta e alivia, reprime e faz vista grossa, morde e assopra. O arrefecimento da pandemia permitiu a liberação de eventos privados fechados, supostamente com controle sanitário via passaporte vacinal e testagem prévia, e silenciou os tambores das escolas de samba e dos blocos.

A rua resistiu com folia não autorizada nos quatro dias do feriado. Um feito. Haroldo Costa, ator, escritor, produtor e sambista, celebra a ousadia: “O carnaval se afirma através das atitudes transgressoras que são praticadas em todos os níveis. Os blocos clandestinos dão a medida exata deste comportamento. Carnaval é um estado de espírito contagiante e irrefreável”. Para Helena Theodoro, mestre em educação, doutora em filosofia, pesquisadora de história e cultura afro-brasileiras, as aglomerações dos últimos dias foram “a forma que o povo encontrou para estar junto, trocar energia, se alegrar”.

Em 2022, dá para dizer que teve carnaval. E que não teve. As agremiações que contam a história e moldam a identidade do povo carioca foram barradas no baile da hipocrisia, privilégio dos pagantes. Aconteceu antes com o Réveillon. Em troca de minutos de fogos na virada na Igreja da Penha, na Ilha do Governador, no estádio de Moça Bonita, na orla de Sepetiba, a prefeitura do Rio fechou o metrô a partir das 20h do último dia de 2021. Reservou a moradores e turistas a festa da Praia de Copacabana, tornada maior Réveillon do planeta pela fé dos umbandistas, que, vestindo branco, inauguraram, décadas atrás, os cortejos até o mar em homenagem a Iemanjá.

Surrupiaram o Réveillon. Sabotaram o carnaval dos blocos e das escolas de samba. Silenciamos. A festa que acontecerá em abril há de lembrar a cidade da força cultural e da potência dessa cadeia produtiva. Estudo recém-concluído pela Secretaria municipal de Desenvolvimento Econômico e pela Fundação João Goulart estimou que só os desfiles no Sambódromo envolvem 45 mil ocupações. Entre artistas, componentes, trabalhadores e público, cada noite na Sapucaí reúne 100 mil pessoas, quantidade superior à população de 94% dos municípios brasileiros.

Em 2020, a festa recebeu 2,1 milhões de turistas e rendeu R$ 4 bilhões. Os cofres municipais arrecadaram 23% mais ISS em serviços de hospedagem, turismo, lazer e arte. No carnaval de rua, os economistas Gabriel Pinto e Cristina Couri estimaram movimento financeiro de R$ 1 bilhão nos 376 blocos, que geraram cerca de 20 mil postos de trabalho e arrastaram mais de 6,8 milhões de pessoas naquele ano.

O carnaval é uma joia do Rio e tem de ser preservado. Gera riqueza, mas, sobretudo, representa histórica, cultural e espiritualmente a cidade como nenhuma outra festa, em nenhuma outra data. É uno, não duo.

 

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