Valor Econômico
Esquerda e direita procuram nova ordem
mundial
As primeiras reações à invasão na Ucrânia
mostram a direita e a esquerda brasileira, em seus estratos mais empedernidos,
ambos desnorteados, num discurso de difícil tração.
A guerra pôs o presidente Jair Bolsonaro em
situação constrangedora, de ambiguidade, forçado a falar menos do que pensa.
Embora esteja claro que sua simpatia viaje até o Kremlin. O Palácio do Planalto
em Brasília está tão cercado de delírios olavistas quanto Kiev de tropas
russas.
A esquerda também é assombrada pelos
instintos mais primitivos, ainda que justificados com profundidade, digressões
e contexto histórico. Desde a eclosão do conflito, há nove dias, vozes
progressistas procuram relativizar a agressão de Vladimir Putin lembrando que o
imperialismo ianque fez e faz igual em lugares como Iraque ou Afeganistão, com
os quais a comunidade internacional parece pouco se importar. O único país a
ter atacado outro com bomba atômica foram os Estados Unidos.
A Rússia, herdeira do império soviético,
teria razões geopolíticas para proteger seu espaço dos avanços da Otan e do
Ocidente, dono da ordem capitalista. Na caixa de ferramentas ideológicas, a
chave da Guerra Fria saiu do fundo do armário para dar conta dos novos e graves
acontecimentos.
Os principais atores, as duas grandes potências militares, parecem os mesmos rivais de ontem. Mas, de qualquer ângulo, a ação russa, o rastro de destruição, a tragédia humanitária, as ameaças de ataque nuclear são indefensáveis. Não é no autocrata e ex-oficial da KGB que a esquerda vai reviver sonhos de uma sociedade igualitária. Exceto como pastiche de crítica à ordem liberal.
Militantes do Partido da Causa Operária
(PCO) - o equivalente do bolsonarismo na extrema esquerda - saem às ruas em
manifestação pró-Rússia. Numa nota quase digna do mesmo PCO, a bancada do PT no
Senado culpa os Estados Unidos e o expansionismo da Otan pela invasão na
Ucrânia. Poucas horas depois, apaga a publicação nas redes sociais do partido,
afirmando que o texto não passara pela aprovação dos parlamentares.
A moda pegou no PT quando a seara é
política internacional. Em novembro, o partido já havia recuado e excluído de
seu site oficial a nota em que saudava a reeleição de Daniel Ortega. Há 15 anos
no poder, o ditador da Nicarágua metera seus opositores na cadeia para garantir
a vitória.
Numa entrevista ao “El Pais”, o
ex-presidente Lula comparou a longevidade do nicaraguense no cargo à da
ex-chanceler alemã Angela Merkel, eleita e reeleita democraticamente. Emenda só
não foi pior que soneto porque o petista, na mesma resposta, defendeu a
alternância de poder e condenou a prisão de adversários de Ortega. Não sem
antes se apresentar como vítima do que teria sido perseguição semelhante no
Brasil, onde ficou preso por 580 dias e apeado da disputa presidencial em 2018.
Na primeira declaração sobre a invasão na
Ucrânia, Lula evitou crítica direta a Putin e recorreu a generalidades:
“Ninguém pode concordar com guerra, ataques militares de um país contra o
outro”. Nas falas dos últimos dias, em visita ao México, passou a
responsabilizar mais diretamente o presidente russo, embora com a ressalva de
que as “potências” ocidentais também têm culpa. Lembrou que a guerra dos
Estados Unidos contra o Iraque se baseou numa mentira, uma vez que nunca ficou
provado que o regime de Saddam Hussein detinha armas de destruição em massa.
Se, à esquerda, o antiamericanismo, o
anticapitalismo e a busca por uma sociedade menos desigual nunca abraçaram o
Tio Sam com capa de herói, pela direita o conflito na Ucrânia aponta para uma
visão de mundo que não parou no século 20, ou pelo menos não é mais sustentada
pelo alinhamento automático aos Estados Unidos ou a seus aliados no Ocidente.
Tudo depende de quem, individualmente ou
partidariamente, governa e em que direção. Como se a geopolítica devesse ser
movida não apenas pelos interesses do Estado-nação, mas pela ideologia, valores
e agenda do líder de plantão. As hostes mais conservadoras e bolsonaristas
também se voltaram contra os Estados Unidos, ou mais precisamente, contra o
presidente Joe Biden.
Líderes como Biden, o francês Emmanuel
Macron, o canadense Justin Trudeau são apontados como “fracos” e representantes
de um progressismo que embute um pacifismo incapaz de defender a nação como
homens valentes. Putin é admirado como suposto defensor da moral cristã, um
nacionalista que desafia o globalismo liderado por grandes corporações e o
detentor da coragem de um guerreiro. É afinidade que abre espaço para a misoginia
em forma de memes que zombam das mulheres que ocupam destaque na cena
internacional: de Kamala Harris, passando por Ursula von der Leyen até a
predominância de ministras da Defesa em países centrais da União Europeia.
É o tipo de pensamento compartilhado por
Bolsonaro, como registrado pelo colunista Lauro Jardim, de “O Globo”. O
presidente, em meio à crise, fez circular num grupo de WhatsApp uma mensagem
apócrifa, em tom olavista, segundo a qual “A Rússia não é a União Soviética;
Vladimir Putin não é Stalin; USA não é mais uma nação virtuosa; e Só existe a
Rússia, a China e a Liga Árabe capaz de enfrentar a NOM (Nova Ordem Mundial)”.
Pelo texto, intitulado “A única verdade”, “o comunismo tem outro nome, se chama
progressismo e seu berço é a Europa”.
É gente que duvida da ousadia de Putin caso
o ocupante da Casa Branca ainda fosse Donald Trump, um “homem forte”,
agressivo, de inclinação tão autoritária quanto o presidente russo. “Remédio
para um doido é um doido e meio”, diriam. Tudo isso a despeito de Trump ter
sido dócil e simpatizante dos métodos de Putin, até mesmo adulador, como
Mussolini para Hitler. Logo após a invasão, o ex-presidente chamou o líder
russo de “pacificador”, considerou sua ação na Ucrânia “genial” e sugeriu que
os Estados Unidos poderiam fazer algo semelhante, invadindo o México.
Melhor não dar ideia a Bolsonaro, para o
bem das relações entre Brasil e Uruguai.
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