domingo, 6 de março de 2022

Janio de Freitas: Onde estão as vítimas da guerra

Folha de S. Paulo

Alheios à tragédia ucraniana são sujeitados a dificuldades por não estarem no perde-ganha das potências

A guerra econômica, financeira, cultural e esportiva dos Estados Unidos e da União Europeia à Rússia realiza um sonho de 105 anos das potências ocidentais.

Desde a extinção do czarismo, só por uma vez a punição destrutiva foi tentada, na guerra civil fomentada por nações ocidentais contra a revolução comunista em 1917, com o Exército Branco dos restauradores derrotado pelo Exército Vermelho.

Mas derrubar Putin e, no mesmo passo, a potência russa, só para os Estados Unidos tem o velho sentido.

O que pesa sobre Putin é mais do que o ataque brutal aos ucranianos. É também o fato de ser uma lembrança ativa da União Soviética.

Na competição da tecnologia armamentista, na corrida pelo uso estratégico do espaço e pela influência em numerosos países e regiões, a Rússia pós-comunista manteve os projetos da nação alheios à mudança do regime. Política com que a União Europeia conviveu sem maiores asperezas, apesar de alguma contraposição em apoios militares.

Aos europeus, no entanto, o reverso econômico e social das punições à Rússia custará muito mais do que aos americanos. Ainda maiores, só os danos sociais lançados sobre meros espectadores. Os favelados do Brasil, os trabalhadores brasileiros de baixos salários, os desempregados e aposentados, às dezenas de milhões, já estão sofrendo danos muito maiores do que os americanos e os europeus: "...disparada de preços de petróleo, trigo e outros produtos caminha para a maior alta semanal em 50 anos", dito melhor, em meio século.

Com os brasileiros, seus iguais no restante do mundo.

Os preços dependem de motivo para subir. Se alguns o tiverem, os demais os seguem. Os salários, não. Quando enfim aumentados, será a "correção salarial", mentira urdida para encobrir a diferença entre o índice de inflação, dito corretivo, e o verdadeiro aumento do custo dos assalariados por viver e ter família.

Há, nisso, poderosa dose de sem-vergonhice. À qual, até onde pode ir meu testemunho, só se negaram os governos de Getúlio, Jango, Sarney, Itamar, Lula e Dilma. Os demais 19, desde o fim da ditadura de Getúlio em 1945, foram unânimes na política econômica de classe e na demagogia.

Os palpites sobre o futuro são incontáveis, mas a imensidão de possibilidades da guerra e de suas consequências ridiculariza os tantos cartomantes de ocasião.

Uma observação séria do professor de relações internacionais Felipe Loureiro, por exemplo, aponta para a incerteza até das pretendidas punições. É grande o risco de seu excesso ou mau direcionamento levar a resultados como a unidade interna, para resistir a toda pressão externa. Lembrou ele o caso extremo do Japão, que, sufocando sob as sanções dos Estados Unidos contra seu expansionismo asiático, partiu para a guerra com o ataque a Pearl Harbor.

No sexto dia da guerra, uma TV europeia —não é preciso dizer o país— iniciou assim uma crônica de guerra: "Dois lados. Há sempre dois lados na guerra". Feita essa elucidação, era dispensável ouvir mais. Os dois lados lá estão na Ucrânia e no mistério do futuro.

O problema é que, sendo duas guerras, os dois são três: Rússia, Ucrânia e, na sua ofensiva sem tiros, a aliança de Estados Unidos e União Europeia, que tem objetivos também à parte da tragédia ucraniana.

E lembrando ainda o lado dos alheios à guerra e sujeitados à maior dificuldade de viver por não estar no perde-ganha das potências.

E lembrando ainda o lado dos alheios à guerra e sujeitados à maior dificuldade de viver por não estar no perde-ganha das potências.

 

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