Dada a explicação, antes de tratar da matéria que anunciei acima, vou pedir licença aos leitores para cometer o gesto, normalmente antipático, de me citar. E de fazê-lo de modo longo, o que arrisca juntar, à provável antipatia, um risco de enfado. Como se não bastasse, é citação de texto antigo, de quase duas décadas atrás. Com o risco adicional do anacronismo, consuma-se a imprudência. Mas é meu intuito mostrar aos leitores que ouso tratar do tema a partir de inquietações antigas e não ditadas por sua recorrência atual. Como não posso remetê-los à publicação original (A Tarde, ou Tribuna da Bahia, em algum momento de maio de 2004, em página que também não sei precisar) submeto-os à leitura do texto inteiro, que tenho em arquivo pessoal e que aí vai. O título era “Cotas, democracia e incertezas”:
Ocorre,
no momento, intenso debate, entre professores e outros segmentos da UFBA,
acerca de proposta aprovada (a meu ver, em boa hora), pelo Conselho Superior de
Ensino, Pesquisa e Extensão, daquela instituição, de reserva de cota para
egressos de escolas públicas e, dentro dela, uma subcota para afrodescendentes,
medida que terá repercussão sobre os cursos mais elitizados da universidade.
Creio ser do interesse público a questão, daí que, não sendo versado no
assunto, abordo-o neste espaço, como cidadão.
Sobriedade é qualidade que se supõe
abundante no meio universitário, composto de pessoas habituadas ao manejo da
razão. Por isso tenho me visto espantado e perplexo com o clima plebiscitário
(alguém já o qualificou assim) que tomou conta, na UFBA, da discussão de tema
tão complexo. A julgar pelo teor dramático e o tom quase apocalíptico de muitas
intervenções opositoras da medida, o tema está, de fato, polarizando
consciências e ferindo-as como navalha na carne, mais até do que a reforma
universitária que vem por aí.
Mas até por não estar se pautando por
padrão de racionalidade “acadêmica”, o embate acabará ajudando a sepultar o
autoengano que se comete quando: 1) se subestima a relevância política da
questão das relações raciais no Brasil (e na Bahia); 2) se crê que a
universidade é uma redoma, que vive só de conceitos, sem contaminação por
preconceitos e paixões que o tema desperta. É pena o grande público não estar
acompanhando nosso debate interno, pois poucas vezes nos desnudamos tanto;
poucas vezes as por nós bem guardadas fronteiras entre esquerda e direita foram
transpostas com tanta fluência. Temos testemunhado ou sido atores de um strip-tease
ideológico intramuros, tão “histórico” quanto a decisão do CONSEPE.
Convencido do acerto da medida, ainda
pendente de aprovação pelo Conselho Universitário - que se reunirá no próximo
dia 17 -, não tenho, contudo, argumento novo a somar aos que foram
apresentados. Mas colegas já mostraram, melhor do que eu faria, que políticas
reparatórias, dirigidas a afrodescendentes e outros grupos socialmente
oprimidos, não excluem atenção ao problema mais amplo do ensino público.
Contrapor uma coisa à outra é adiar para as calendas – como é hábito no Brasil
– a amortização de imenso passivo social e racial, em termos de igualdade de
oportunidades e virar as costas a aspirações de indivíduos concretos, que vivem
a discriminação no presente, a quem não é justo pedir que se contentem com a
miragem de que seus filhos (quiçá, netos ou tataranetos) terão, enfim,
cidadania plena.
Para não ser rebarbativo, só pondero aos
colegas que fazem oposição frontal ao projeto que, muitas vezes, a vida nos faz
encarar, depois, como conquista, o que antes havíamos julgado nefasto. Para
ficar num exemplo, lembro os adjetivos fortes usados, por um sindicalismo que
se cria mais combativo que seus antecessores, contra a legislação trabalhista
herdada dos tempos de Vargas: “populista”; “pelega”; “autoritária”; fascista, e
por aí se ia! Nosso atual presidente da República (em quem enxergo - e não de
hoje - equívocos, mas a quem não acuso, é bom dizer, de traição ou capitulação)
referia-se à CLT como o AI-5 dos trabalhadores! Pois não é que essa Geni é hoje
vista, até com exagero (pra variar), como conquista a defender do apetite voraz
do mercado? O mundo gira, ainda bem!
Creio, então, que nos atuais tempos de
continuidade e minguadas reformas, devemos e podemos dar, senão aos autores,
pelo menos aos sujeitos-alvo dessa iniciativa, o benefício da dúvida e a chance
do experimento. Sim, porque é de experimento que, afinal, se trata: um projeto
modesto (como assinalou o prof. João Reis), cercado de sábias precauções,
sugeridas numa primeira rodada desse debate como, por exemplo, a de não
dispensar os beneficiários das cotas do cumprimento, na seleção, do nível de
desempenho exigido aos demais vestibulandos e a de fixar prazo limite para a
vigência das cotas, frisando, assim, o seu caráter transitório.
Será que o status quo universitário é tão
virtuoso e “natural” que não possamos ousar substituir, cuidadosamente, certas
pedras do edifício, sem que se escreva nas estrelas que elas sejam,
necessariamente, arremessadas contra nós, como bumerangue? Ou estamos diante do
temor que acomete o espírito quando se divisa uma esquina e não se vê com
certeza o que virá depois de dobrá-la? É humano senti-lo, mas não obrigatória a
conduta reativa: a alguns o temor paralisa e vem, como defesa, o que Albert
Hirschman chamou de “retórica da intransigência”, idéia que deu título a um
livro seu. Mas há os que se movem, de olhos abertos, em meio à inevitável
incerteza, maior, aliás, na democracia. A universidade precisa estar entre esses
últimos. Não é?
Após aspas e parênteses, com os quais quis
dizer (talvez lembrar) “com quem estarão falando” possíveis interessados em conversar
sobre o que ousarei escrever a seguir, passo ao que trata a matéria da Folha. Penso
que trata de modo um tanto estático (comparação entre duas fotografias, uma de
2006 e outra de agora) um tema que tem enredo de filme. Com isso talvez tenha
perdido uma oportunidade de ouvir, das suas qualificadas fontes, considerações
sobre o tema ainda mais relevantes do que as que ouviu.
Primeiro ponto é: em 2006 falava-se em
cotas para as universidades. Hoje fala-se em cotas para muitas coisas, até para
a representação política. Seria interessante saber (eu não sei) se os
intelectuais que revisam hoje sua posição de 2006 estendem, ou não, sua atual
posição para a extensão que, hoje, a ideia das cotas abrange. Ou se o que revisam
é a opinião que tinham, em 2006, de que a proposta de cotas (naquele desenho de
incidência setorial mais restrita) estava na contramão da ética republicana
e/ou da igualdade política. O amadurecimento da reflexão perante os fatos
parece indicar mesmo a revisão da posição então assumida, contrária àquela política
pública, a qual se revelou, afinal, democratizante. Mas daí se deduz apoio
irrestrito à incidência social bem mais ampla que assume agora a ideia de
cotas, com seu alargamento já obtido para muitas outras aplicações? Se também
aí sim, a dedução pode avançar ainda mais e valer para o que ainda se deseja
alargar, chegando não só à competição política - como já chegou - mas também desenhar
a composição das casas legislativas, como antessala das urnas?
Um segundo ponto: há ou não sentido em
debater até que limite as cotas valem para além do combate às desigualdades de
acesso a oportunidades que o ensino superior e outras esferas fornecem aos
cidadãos, protegendo-os de discriminação por raça? As cotas devem ser vistas
como algo mais que instrumentos temporários de políticas de promoção de
igualdade social e racial para se tornarem um "valor" perene? Se não
são valor, mas instrumentos e se como tais não são perenes, mas a continuidade da
política se justifica pela persistência dos motivos que a geraram, então quais
são os critérios que podem equilibrar, de um lado, a justificativa para essa
prorrogação e, de outro, a virtual avaliação de que, se persistem as
desigualdades, a política está sendo ineficaz e outros caminhos devem ser
buscados para seguir perseguindo esse objetivo? Mais uma vez, não reivindico
uma conclusão, nem sequer uma assertiva, mas a legitimidade desse ponto na
pauta, a qual surge num filme, não na comparação de fotos.
Por fim, há um terceiro ponto, talvez o
mais importante - que um filme revelaria e as fotografias de cada momento, não –
que é a modificação do conceito e, com ele, do escopo da política, que se
verificou com o tempo. Era antes uma política de promoção de igualdade social e
racial, que teria a reparação histórica como um hipotético efeito secundário e
a afirmação racial como implicação ainda mais incerta. Com o tempo e o
protagonismo dos movimentos identitários, a reparação tornou-se a principal
razão de ser da referida política. Com isso operaram-se, dentre outros, dois
importantes deslocamentos. Primeiro, como a dívida histórica é imensa e por
essa imensidão, impagável, as cotas passam a ser vistas como imposto devido ao
passado e não obrigação assumida no âmbito de um pacto social entre atores do
presente, a saber, instituições, movimentos e cidadãos. Segundo deslocamento é, se o credor atemporal
é um grupo social oprimido por uma opressão ancestral, o beneficiário imediato
será quem ocupar o "lugar de fala" simbólico desse oprimido. Em
tradução para o concreto, os movimentos afirmativos dessa identidade. Mudando
assim o conceito e a contextualização temporal da desigualdade que a política
deve combater, muda também o alvo principal da promoção, que não é mais o
cidadão/ individuo negro para ser o grupo social identificado com a raça. Como
o grupo social é uma categoria abstrata, começa a requerer representação
concreta para que a política saia do papel. Daí o verbo empoderar ter se
tornado central no léxico que passou a contingenciar as agora várias políticas
de cotas, ou pressões para criá-las. As
"comissões de verificação" de negritude são corolário dessa lógica.
Portanto, não é de coisa simples que se
trata quando se retrata posições ou revisão de posições de intelectuais sobre
esse assunto. É preciso explicar antes o que se diz quando se fala de política
de cotas. Do meu modesto lugarzinho de
fala, certamente situado em fileiras z de qualquer auditório contemporâneo, repetiria
a atitude política de 2004, sendo a favor de que haja, sim, políticas de cotas,
inclusive raciais, como um dos instrumentos de combate ao racismo. Portanto,
opino ao lado de quem quer deter o movimento reacionário que, sem dúvida, se engendra
no Congresso para deslegitimar as cotas desde o seu sentido originário, vindo justamente
daí o seu caráter de retrocesso. E
concordo que mudanças na legislação pertinente, no atual contexto político,
tendem a não dar em coisa que preste, do ponto de vista social. Mas também
penso que, diferentemente de 2004, hoje é preciso atualizar a discussão do
conceito, do objetivo, dos limites e dos destinatários concretos das políticas
de cotas.
Quero dizer com isso que políticas de cotas
podem ser sustentáveis, mas não "imexíveis". Passada a hora política destrutiva
que estamos vivendo no Brasil, novas experiências legislativas nesse campo
serão bem vindas, não necessariamente reacionárias e, muito menos, racistas.
Esse tipo de argumento encobre, com um palavreado radical e desagregador, uma
atitude que valoriza conquistas ao modo de uma defesa de status quo, ainda que
limitado e socialmente periférico. Ao
contrário, o ato de reformar está, também nesse tema e como quase sempre, em
posição de sintonia com a ideia de progresso social.
*Cientista político
e professor da UFBa.
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