domingo, 6 de março de 2022

Eliane Cantanhêde: Nomes aos bois

O Estado de S. Paulo

Aos fatos: guerra é guerra, condenação é condenação e Bolsonaro não é neutro

Na Rússia, o autocrata Vladimir Putin impõe ao povo russo que guerra não é guerra, invasão não é invasão, só há uma “operação militar especial”. Quem fala o contrário fica sujeito a prisão de 15 anos, o principal jornal de oposição foi fechado, a imprensa está censurada, há restrições ao Facebook e ao Twitter e crianças são bombardeadas com fake news.

Na ONU, Conselho de Segurança, Assembleia-Geral, assembleias emergenciais e Conselho de Direitos Humanos votam pela condenação da Rússia na guerra, mas condenação não é condenação. O texto da Assembleia-Geral não “condena”, só “deplora” a ação russa.

No Brasil, a posição do Itamaraty é a mesma desde a nota no dia da invasão e em todas as manifestações na ONU, pedindo “cessar-fogo” e “suspensão imediata das hostilidades”. Não fala em guerra, como quer a Rússia, nem em condenação, como definiram os conchavos na ONU. Aqui, guerra é “hostilidade”.

Esses contorcionismos verbais mostram o peso das palavras nas relações internacionais e a força da comunicação dos poderosos para moldar a realidade, distorcer fatos e manipular corações e mentes nos próprios países e no mundo.

Se belicamente a Ucrânia não chega aos pés da Rússia, que tem bomba atômica e é a segunda maior potência militar, o presidente Volodmir Zelensky vence na comunicação. Despojado, coloquial, ele massifica a percepção de “vítima”, “bem contra o mal”, “fraco e forte”, “rico e pobre”. De outro lado, um Putin frio, ameaçador.

Aqui no Brasil, a comunicação é confusa, desencontrada, a partir dos termos do presidente Jair Bolsonaro: “solidariedade” à Rússia, “neutralidade” e “parceria” com Putin. Na primeira versão, a simpatia com o vilão da história era por causa dos fertilizantes, agora é pela defesa de Putin à soberania do Brasil na Amazônia, amanhã, sabe-se lá qual será a justificativa, enquanto a diplomacia contém danos e mantém a racionalidade.

Essa ambiguidade remete à ida de Bolsonaro a Moscou, às vésperas da guerra lá e da eleição cá, levando não os ministros da Economia e da Agricultura, mas o especialista em fake news Carlos Bolsonaro e oito oficiais da mais alta patente. O que essa constelação de estrelas queria com Putin, estrategista de guerras e fake news em eleições alheias?

Mais um segredo que governo e Forças Armadas vão trancar por cem anos, enquanto proliferam suposições, nenhuma boa para Bolsonaro. Assim como guerra não é guerra e condenação não é condenação, fertilizante também não é fertilizante e Amazônia não é Amazônia. São disfarces, dissimulações, para esconder a verdade do mundo e do povo brasileiro. 

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