domingo, 6 de março de 2022

Míriam Leitão: Estilhaços globais do colapso russo

O Globo

A economia russa caiu num precipício e puxa as outras economias. A globalização atou tanto milhões de fios entre os países que o terremoto que atinge uma nação é sentido por todas as outras. A ideia de que o Brasil não seria afetado pela proibição de venda de fertilizantes não faz sentido. A Rússia não conseguirá vender porque a seguradora não fará o seguro que é obrigatório em qualquer carga. Metade do gás neon do mundo é fabricado pela Ucrânia e o produto é insumo para chips e semicondutores, e isso afeta a indústria de automóveis. Os choques se espalham assim, pelos elos que se formaram em anos de cooperação.

É da natureza da economia atual que nenhum país produza tudo. Mesmo uma economia com barreiras ao comércio internacional, como a nossa, depende de inúmeros insumos, produtos e mercados para continuar funcionando. Dois erros comuns dos governantes em qualquer crise é achar que é possível se blindar contra o problema ou, pior, que será beneficiado por ser um porto seguro a 10 mil quilômetros da guerra. Não existe longe. Foi assim nos colapsos cambiais dos anos 1990, foi assim na quebra do Lehman Brothers, é assim em qualquer evento extremo.

A guerra de Putin gerou uma crise geopolítica, financeira, econômica, comercial, militar e humanitária. O mundo assiste, com pouca capacidade de reação, uma nação ser esmagada por uma potência militar, lutar uma luta perdida e desesperada pela autodeterminação. É dramático, é repulsivo, é desumano. Ao lado da dor de ver um país se esvaindo, o mundo teve que viver momentos de terror com o ataque à Zaporíjia, maior usina nuclear da Europa. Um Exército que é instruído a atacar uma usina atômica é terrorista. A palavra usada pelo presidente Volodymyr Zelensky é a única possível.

Escrevi aqui há cinco dias que o bombardeio econômico que atingiu a Rússia a levaria de volta à crise de 1998. Em relatório na sexta-feira, o JP Morgan disse que pode ser até pior do que o colapso do rublo de 1998, na esteira das crises cambiais de uma sequência de moedas. O banco disse que a recessão será de 7%, a Bloomberg Economics aposta em 9%. A verdade é que não se pode estimar porque tudo dependerá da duração da guerra e das sanções. Não há mais cenário bom para a Rússia, mas isso afetará também todas as outras economias. O primeiro choque atinge a Europa.

As sanções tinham que ser decretadas, dado que não se pode dar uma resposta militar a uma potência com 6.000 ogivas nucleares, um governante sem limites, num país em que a sociedade foi amordaçada. Mas ao congelar as reservas internacionais russas, os países ocidentais instalaram uma crise imediata de liquidez no país, que rapidamente afundou a sua economia. Tudo se agravou na avalanche de empresas que decretaram o fim das atividades na Rússia ou negócios com suas empresas. A Rússia foi sendo desligada do mundo. Nada disso se faz sem espalhar estilhaços por todas as economias.

Ao fim desta semana trágica, 70% do seu petróleo estava sem comprador, apesar de os russos estarem oferecendo o produto com desconto. A comercializadora não comprava, o banco não financiava, a transportadora se negava a transportar. Toda carga precisa de seguro. Então, mesmo que a Rússia queira vender fertilizantes, o Brasil precise comprar, e haja quem transporte, os operadores não conseguem fechar o contrato com a seguradora.

— Ficou muito arriscado, o delta de risco da Rússia subiu exponencialmente para a seguradora. O navio pode ficar retido — explicou um especialista.

Claro que o Brasil pode correr atrás do Canadá, Marrocos, Irã, China, mas todos os outros países estão fazendo o mesmo. Há vários gargalos se formando. O mundo já vivia um choque de energia, agora vive o segundo antes de resolver o primeiro. As cotações de petróleo, gás, carvão explodiram nos últimos dias. Até o carvão. O ataque à usina nuclear tornou concreto um perigo que parecia apenas um cenário de terror. A usina atômica pode virar uma arma contra a própria população em caso de agressão externa.

Nos últimos dez dias o mundo teve que pensar no impensável e viver o indescritível. Pesadelos que pareciam ter ficado no passado ou pertencer aos filmes e livros de ficção amanheceram na nossa porta. Ainda não sabemos como sair do tormento de Vladimir Putin criou para todos nós.

 

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