Folha de S. Paulo
Em vez de horror da Tchetchênia, guerra
pode ser mais arrastada e daninha para o mundo
A gente lê e ouve dizer que os
militares russos podem fazer com Kiev o que fizeram em Grozni, na
Primeira Guerra
da Tchetchênia (1994-96). Os russos quase cercaram e passaram a bombardear
a capital da Ucrânia e outras cidades a fim de impor uma rendição.
Pode ser. Mas Grozni é outra história. Se
Vladimir Putin fizer na Ucrânia o que Boris Ieltsin fez na Tchetchênia, terá
perdido a guerra de vez.
Ainda assim, Kiev logo ficará sem combustível, talvez sem eletricidade, água, celular, internet e terá pouca comida, como ora a cidade portuária de Mariupol. O povo vai lutar nas ruas ou, no caso extremo e tchetcheno, entre escombros? A resposta importa além da preocupação humanitária ou da curiosidade mórbida.
Duração e tipo de conflito vão
dizer algo sobre a crise econômica na Rússia e
no resto do mundo. A situação é alarmante. Como se viu, a gente já
discute se
pode faltar fertilizante para as lavouras que sustentam o Brasil e
também suas exportações. Já temos garantido um
pouco mais de inflação de comida e combustíveis.
A invasão de Grozni levou uns quatro meses.
Morreram cerca de 25 mil civis, cerca de 6% da população (mas mesmo as melhores
contagens são disparatadas). A Rússia perdeu pelo menos 5.000 soldados.
A Tchetchênia não era a Ucrânia. Era e é
uma república russa, ainda que sob porrete imperial, com uma população de
"etnia" diferente e 95% muçulmana. O país era tão pobre, na média per
capita, como então a Índia (um terço da renda per capita brasileira. Aliás, a
Ucrânia é um pouco mais pobre do que o Brasil). Quase ninguém no
"Ocidente" ligava para os tchetchenos, tratados como aqueles
subdesenvolvidos esquisitos que sempre morrem muito, como muçulmanos em geral e
sírios, iraquianos, afegãos, líbios, tutsis, sudaneses, etíopes etc.
Os ucranianos são católicos ortodoxos,
"irmãos dos russos", na propaganda putinista, e "louros de olhos
azuis", como se ouviu em tanto relato racista sobre esta guerra. Moram em
uma espécie de estado tampão na porta da Europa central, quintal deste novo e admirável
mundo velho da disputa de zonas de influência. A Rússia tem bala nuclear.
Os relatórios sobre o conflito na
Tchetchênia contam de saques, estupros, tortura, execuções, o pacote habitual
mesmo de guerras louras de olhos azuis recentes na Europa, como no
desmantelamento da Iugoslávia, nos 1990. Os militares russos apanharam. Foram
para a guerra com recrutas mal alimentados, abastecimento precário, equipamento
caindo aos pedaços e generais cretinos no comando. A União Soviética tinha
acabado de ir à breca, a Rússia empobrecera pavorosamente.
A Rússia tem artilharia e aviação para
reduzir a Ucrânia a uma paisagem lunar com ruínas e cadáveres em dias. Apesar
do morticínio já atroz, tem sido "comedida", como diz qualquer
analista militar. Aparentemente, quer tomar Kiev e a segunda maior cidade,
Kharkiv, daí riscar uma linha até o sul, perto da Crimeia, cortando o país pelo
meio, tomando o leste, cercando e aniquilando o que sobra das melhores tropas
ucranianas, além de ocupar o litoral inteiro, diria um resumo rápido de relatórios
de centros de estudos militares e estratégicos.
Em ritmo comedido, isso deve levar semanas
—dez dias já tumultuaram o comércio de petróleo, trigo e milho. Em menos de um
mês, a
população russa vai ver lojas vazias, verificar o quanto empobreceu e
terá noção dos anos de dureza por vir. Mas pode ser um colapso não muito
diferente do Brasil pós-2013. Difícil imaginar que isso possa abalar Putin. Há
mais risco de a desgraça se arrastar do que uma reprise tchetchena: um Vietnã
em cápsula, virado do avesso, com veneno de crise econômica.
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