O Globo
A ordem
emitida sugeria apenas um deslocamento forçado: todos os judeus da cidade de
Kiev e vizinhanças deveriam se apresentar às 8 da manhã do 29 de setembro de
1941 na esquina de duas ruas específicas, munidos de documentos, dinheiro e
pertences valiosos; além de roupas quentes e lençóis. Quem não obedecesse seria
encontrado e fuzilado. O comando nazista que ocupara a cidade uma semana antes
esperava atrair não mais de 5 mil vítimas, uma vez que 70% dos 225 mil judeus
da cidade já haviam fugido. Restavam, portanto, entre 60 mil e 70 mil, e boa
parte deles compareceu ao local.
A logística montada para ludibriá-los foi eficiente, tipo linha de montagem. Mal chegavam, entregavam primeiro os pertences, depois capotes e sapatos, em seguida as roupas do corpo. Até ficarem nus. Tudo muito rápido e atordoante. Quando, finalmente, se aproximavam do ponto em que se ouviam disparos de metralhadora, já era tarde para recuar. Um barranco de 150 metros de comprimento, 30 metros de largura e 15 de profundidade os aguardava. Obrigados a deitar em fila sobre os já executados, cada nova fileira recebia uma rajada de tiros no pescoço. Não é fácil fuzilar individualmente 33.771 mulheres, crianças e homens. Os SSs de Hitler e seus colaboradores locais precisaram de 46 horas para completar o massacre de Babi Yar.
Enquanto a Ucrânia esteve sob domínio
soviético, e mesmo após a independência, em 1991, inúmeras foram as tentativas
de erguer um monumento oficial aos fuzilados. Mas só em outubro do ano passado
o imponente memorial que faz jus à História foi inaugurado em Babi Yar. Na
presença de três presidentes: da Alemanha, de Israel e o ucraniano Volodymyr
Zelensky —o mesmo que o líder russo Vladimir Putin pretendeu esmagar feito
pulga com a invasão desencadeada em 24 de fevereiro.
Nesta segunda semana de guerra, o memorial
aos fuzilados em 1941 permanece milagrosamente de pé, apesar de o país estar em
via de esmagamento físico pela Rússia. Também Zelensky continuava vivo à frente
de sua já histórica resistência cívica. Onipresente, ora em bunkers, ora entre
escombros da capital, ele angariou respeito mundial na marra e no improviso da
necessidade. Calouro imprensado entre os interesses da Otan e do poderio
militar da Rússia, optou pelo risco de resistir com seu povo. Em apenas uma semana
de guerra, tornou-se estadista de uma terra arrasada, órfã de mães, avós e
crianças em fugas dilacerantes, que deixam nas trincheiras da pátria seus
maridos, pais e filhos entre 18 e 60 anos.
Tudo indica que “o pior ainda está por
vir”, como disse o presidente da França, Emmanuel Macron, após seu enésimo
telefonema com o homem entrincheirado no Kremlin. Das 15 usinas nucleares
operacionais distribuídas em quatro regiões do país, a maior delas, Zaporijia,
espalhou calafrios mundo afora ao sofrer um ataque e ocupação russos que
resultaram num incêndio. Espera-se que pelo menos o medo do imaginado “inverno
nuclear” resista como linha vermelha a não ser atravessada pelos dois
principais atores por trás dessa guerra: os países da Otan e a Rússia de Putin.
Seria este o “iremos até o fim”, anunciado pelo chanceler Sergey Lavrov? Com
cinzas a preencher a atmosfera, o bloqueio do nosso sol e o consequente colapso
de nossos ecossistemas e da produção alimentar? Nunca é bom sinal quando o
chefe da diplomacia de uma superpotência fala em “terceira guerra mundial
nuclear e devastadora”.
Mesmo o uso de bombas de fragmentação, não
nucleares porém estraçalhantes, além de proibidas por uma convenção da ONU de
2008, é capaz de transformar as cidades ucranianas em cemitérios físicos e
humanos. Apesar de a convenção ter sido assinada por mais de 111 países, foi
solenemente desprezada por Estados Unidos, Rússia, Brasil e Arábia Saudita,
entre outros, e faz parte do arsenal destinado a dobrar a resistência
ucraniana. Um segundo tipo de bomba proibida, a de vácuo, capaz de sugar o ar e
sufocar suas vítimas, também está a bordo do comboio bélico adentrando a
Ucrânia pela fronteira norte. Ao longo de toda a primeira semana da guerra, o
veterano Fred Pleitgen, um dos 75 profissionais da rede CNN americana (entre
jornalistas, motoristas e intérpretes) atuando no front, conseguiu filmar a
entrada desse material a partir do território russo.
Cabe aqui abrir um meritoso parágrafo para
o peso duplo de uma cobertura jornalística de guerra em país sem censura. Para
a Ucrânia, o influxo de repórteres e cinegrafistas sustentados por sólidas
estruturas planetárias foi uma dádiva. Enquanto a população russa vem sendo
servida com açucaradas cenas da “operação militar especial” (o termo “guerra” continua
proibido), intercaladas por coreografadas reuniões de Putin com assessores, os
combatentes ucranianos extraem coragem da ininterrupta cobertura do que estão
vivenciando. Graças à imprensa, sabe-se hoje que crematórios móveis fazem parte
do arsenal russo enviado à Ucrânia para que seus mortos não sejam fotografados
no abandono, nem sejam devolvidos às famílias quando a verdade se impuser.
Mesmo que Putin consiga domínio sobre o
território ucraniano, os russos pouco a pouco começarão a conhecer o tamanho do
estrago. Virão à tona a extensão do despreparo de suas tropas e as humilhantes
falhas iniciais da estratégia de ocupação. Será sentido com impacto pleno o
encolhimento drástico da décima potência econômica mundial. Isso sem sequer
ainda levar em conta um eventual confronto direto com o poderio assanhado da
Otan.
Putin prometeu a seu povo reconquistar a
Ucrânia que lhe seria devida e convocou a alta cúpula do país invadido a
decapitar o governo “neonazista” do judeu Zelensky e a implantar um novo, livre
de “marginais drogados”. Contudo, caso o mundo continue de pé, é Putin que
corre o risco não impensável, embora longínquo, de vir a ser ele o destronado
pelos seus. O fim deste desmundo não está à vista.
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